Rock à Moda do Porto
Foi no passado sábado, dia 22 de Outubro, que o Super Bock Arena fez a chamada aos tripeiros para receber alguns dos seus mais históricos projectos. Com uma forte incidência em temas que marcaram os anos 80 e 90, o comboio da nostalgia atracou nos jardins do palácio, levando todos os presentes numa viagem inesquecível.
Mas antes de atacar os momentos mais altos desta espécie de noite de gala, é preciso referir alguns pontos menos bons do evento. Não sei que números é que a promotora vimaranense Vibes & Beats antecipava, mas a verdade é que o pavilhão esteve longe de estar muito composto, especialmente após o concerto de GNR, que pareceu servir de tónico para muita gente dar por finalizada a sua noitada. O que nos leva a outro ponto, que está potencialmente ligado a esse: era um público algo diverso, que dava a sensação de se dividir sobretudo em dois grandes grupos: famílias de classe média-alta que raramente se sujeitam a concertos de rock, e fãs acérrimos de um ou outro artista, nomeadamente ZEN e Pluto (vá, e todos os projectos que orbitam a veia criativa de Manel Cruz). O terceiro ponto é mais um efeito secundário deste tipo de atuações em modo festival: o pouco tempo entre os concertos resultou sempre numa enchente nos bares e restaurantes do pavilhão, o que fez com que a comida fosse bastante escassa a certa altura da noite, e que impediu muita gente de assistir totalmente aos concertos todos (a alternativa era passar fome).
Feitos estes reparos, vamos à música propriamente dita. Os primeiros a entrar em cena foram os Três Tristes Tigres, na sua segunda vida: após um hiato de registos discográficos de 22 anos, lançaram em 2020 “Mínima Luz”. Da sua formação anterior, apenas a dupla Ana Deus e Alexandre Soares se mantém (verdade seja dita, sem qualquer um dos dois um regresso faria pouco sentido), mas fazem-se acompanhar com músicos de luxo, como o baterista Fred (de projectos como Buraka Som Sistema e Orelha Negra), Rui Martelo (Bom, o Mau e o Azevedo, Krypto e Greengo), Angélica Salvi na harpa e, claro, Regina Guimarães como principal motora poética. Numa noite inclinada para a nostalgia, o concerto dos Três Tristes Tigres serviu sobretudo para mostrar as novas garras, bem limadas pelo seu novo registo, onde a sensibilidade pop subtil de outros tempos dá lugar a sonoridades experimentais mais contemporâneas e espaciais. Ausentes do ringue estiveram talvez dos temas mais icónicos da banda (“O Mundo a Meus Pés” e “Zap Canal”) e por isso a alguma exaltação do público chegou à boleia de temas como “Anormal” ou “Olho da rua”, retirado do seminal Guia Espiritual de 1996. É, porém, interessante vivenciar o regresso aos álbuns e aos palcos de uma das bandas mais importantes do rock da invicta.
De uma diva para outra (e mantendo o teclista Miguel Ferreira para uma segunda actuação), Manuela Azevedo e o seu Clã protagonizaram, discutivelmente, o melhor concerto da noite. É impressionante como é que ao longo dos seus longos 30 anos de carreira a sua chama continua acesa de forma tão intensa, muito por mérito da entrega enérgica e calorosa de Azevedo, sempre no ponto caramelo de intensidade, teatralidade, genuinidade e, claro, qualidade vocal. E tudo isto sem denotar um pingo de arrogância ou prepotência, mas sim uma graciosidade que só acompanha lendas. Posicionados todos em linha, partilhando assim o destaque frente ao público (baterista Pedro Oliveira incluído), ouviu-se de tudo um pouco ao longo da performance, seja o seu lado mais tenro e frágil como em temas como “Sopro no Coração" ou “Problema de Expressão”, seja em clássicos da rock nacional como “GTI” ou “Dançar na Corda Bamba”. Houve ainda espaço para versões inspiradas de “Conta-me Histórias” (dos Xutos & Pontapés, presente na compilação “XX Anos, XX Bandas” de 1999) e uma emotiva homenagem aos Dead Combo através de “Deus Dê-me Grana”, que infelizmente viu partir a sua metade, Pedro Gonçalves, a Dezembro de ano passado. Ora quase a pedir uma lágrima no olho ou a exigir um abanar de anca, foi por entre uma multidão de sorrisos que os Clã conquistaram mais uma noite aos corações da invicta.
Talvez a banda portuguesa com mais sucesso de sempre, um autêntico furacão de popularidade que quem só viveu os anos 90 em Portugal consegue compreender, os GNR foram chamados a intervir numa via que conhecem como a palma da sua mão: estiveram, aliás, no mesmo pavilhão em Março passado, com casa cheia. Talvez por isso mesmo esta noite tenha estado um pouco mais despida de presença humana, mas o profissionalismo de Rui Reininho e os seus agentes foi o mesmo. Se é inegável afirmar que os anos pesam de sobremaneira nas cordas vocais de Rui Reininho, também é justo reconhecer que ainda conseguem proporcionar um espectáculo sério e competente, onde o carisma peculiar do artista ainda contém uns cartuchos para ir disparando charme e graçolas, de quem já faz isto de olhos fechados. E, na verdade, o público ajuda, cantando todas as músicas que na verdade nunca saíram do baú das suas memórias. Começando com “Sub 16”, foi um sem parar de êxitos comerciais, desde “Dunas” a “Efectivamente”, “Pronúncia do Norte” ou “Sangue Oculto”, enfim, todos aqueles temas, mesmo sem querer, todos sabemos mais ou menos a letra.
E falando de presenças fortes em palco, os ZEN são casa de um dos seus exemplares mais crus e provocatórios: um sujeito cujo nome é sinónimo dos cantos mais sujos e impróprios de que o rock tem para oferecer, e cuja aura diabólica tanto atrai como repele. Falamos, claro, de Gon (reza a lenda que em tempos se chamou Rui Silva), que em 1998 marcou o panorama do rock nacional para sempre com apenas um álbum. Mas os ZEN são um caso bastante particular da música nacional. Nascido das cinzas de um dos projectos mais emblemáticos da cidade do Porto, os Cosmic City Blues, juntamente com antigos membros dos Creative Solution (onde Gon militava), os ZEN tiveram um tremendo impacto na cena alternativa do rock portuense e nacional, muito devido ao seu cruzamento virtuoso entre o funk, o rock, os blues e uma pitada de punk na sua rebeldia e postura. E são um caso particular porque a sua história é marcada por muitas mudanças, muitos altos e baixos, muitas mortes anunciadas e muitos ressurgimentos. Há, por isso mesmo, sempre uma sensação especial que nos toca a ver um concerto de ZEN, pois francamente, pode muito bem ser o último. Da sua formação original, apenas o lugar de guitarrista é ocupado por um elemento novo (e como bom é ver o Miguel Azevedo a atacar os riffs e acordes), lugar aliás que sempre foi vendo outras caras ao longo de 1996, a data oficial de nascimento da banda. Eliminando completamente o segundo álbum da banda, que foi assinado sem a voz de Gon, foi pois então um concerto focado em “The Privilege of Making The Wrong Choice”, assim como algumas surpresas, como uma versão muito inspirada de “Helter Skelter” dos Beatles. Entre as músicas, Gon ia provocando a multidão, fosse com manguitos, banhos de Super Bock testa abaixo ou até com o único crowdsurf da noite. Seja num pequeno tasco de rock ou numa arena como o pavilhão Rosa Mota, a banda comporta-se com a mesma atitude e irreverência que os distingue.
Porém, foi notória a debandada do público após o concerto dos GNR, e por isso, um pouco ingrato para os Pluto encerrarem um festival de forma tão brilhante para um público tão reduzido. Quem não se importou minimamente com isso foram as dezenas de fãs da banda que ocuparam as primeiras fileiras frente ao palco, onde a juventude de algumas caras provaram o teorema de que, passados anos e anos, as primeiras filas nos concertos de projectos ligados ao Manel Cruz podem contar sempre com adolescentes e jovens adultos. E é fácil entender porquê. Há sempre algo irremediavelmente irresistível na escrita de Manel Cruz, cuja tragédia, solidão e o agridoce da existência vai fazendo roda viva, e em Pluto isso não é excepção. Junte-se a isso músicos com o talento de pessoas como Peixe na guitarra, Ruca Lacerda na bateria ou Eduardo Silva no baixo e estamos perante um dos mais sólidos alinhamentos que o rock alternativo português tem para oferecer. À semelhança dos ZEN, também Pluto apenas transporta consigo o seu primeiro e único registo de longa duração (“Bom Dia”). E como é bom viajar até ao passado e recordar como foi toda a excitação e frenesim que acompanhou os primeiros tempos da banda, já que foi a primeira vez que tanto Manuel Cruz como Peixe se apresentaram em palco (e estúdio) depois do desmembramento temporário dos míticos Ornatos Violeta. E a verdade é que, com 20 anos em cima, “Bom Dia” foi ganhando o seu espaço próprio na história do rock nacional: 12 temas que apresentam uma sonoridade bem mais experimental e com alicerces em mais assentes no rock progressivo e numa liberdade em fugir à estruturas pop e fechadas do que podíamos encontrar em Ornatos Violeta. Por isso mesmo, Pluto tem o seu universo próprio, a sua vida própria, desligada de tudo que lhe antecedeu. E ao vivo isso ainda é mais notório, seja nas linhas de baixo discretas mas eficazes de Eduardo, na trilha sonora que Peixe vai debitando na sua guitarra, sempre com destino inesperado para quem as escuta pela primeira vez, na execução simples mas importante das linhas de guitarra que Manel faz acompanhar a sua voz mas sobretudo na brutalidade que é Ruca atrás da bateria, que tanto fez penar a equipa técnica que constantemente teve que ir consertando como podia a sua máquina de ritmo. Foi por isso mesmo o fecho perfeito de uma noite que já ia longa, onde além dos registos mais velhinhos ouviram-se registos novos, numa promessa por selar de um disco novo. Esperemos francamente que sim.
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Organização:Vibes & Beats
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sábado, 23 novembro 2024