Reportagem Primavera Sound Porto 2023
No ano em que celebrou a sua décima edição, a versão portuense do Primavera Sound acrescentou mais um dia ao festival , passando assim dos habituais três dias para quatro, o que inevitavelmente trouxe vantagens e desvantagens: se, no papel, o evento soava a uma aliciante odisseia sonora - e no fundo, foi exatamente isso que proporcionou- , na prática tornou-se consideravelmente mais cansativo, sobretudo se tivermos em conta as caminhadas necessárias para chegar aos diferentes palcos onde decorrem os inúmeros concertos do cartaz.
O próprio recinto sofreu alterações, o que também teve os seus prós e contras: por um lado, o novo palco ,denominado Plenitude, revelou-se particularmente envolvente, mas o mesmo não se pode dizer do principal, com um terreno desconfortavelmente danificado pela lama nos dias de maior chuva e a localização demasiado distante do público, o que dificultava imenso a visualização dos concertos. É que se antigamente as grandes atrações do cartaz subiam a um palco instalado numa zona altamente privilegiada , no meio de uma espécie de anfiteatro onde, graças a um declive, praticamente todos podiam assistir sem problemas aos concertos, este ano as condições claramente que não foram as mesmas. E se a mudança se justifica pelo crescimento do festival, não há como negar que a experiência se torna bem menos enriquecedora e memorável, por muito esforço que façamos para nos abstrairmos destes pormenores.
No entanto, se algumas coisas resultaram e outras não- a imprevisibilidade da novidade é mesmo assim, tanto surpreende quanto desilude - , uma coisa é certa:neste dia não faltaram boas atuações. E curiosamente - ou talvez não- os mais "pequenos" ( só em comparação com os headliners, atenção) triunfaram sobre os grandes, e não foi por pouco.
Um exemplo disso aconteceu logo durante a tarde com a passagem de Georgia, senhora que já tocou bateria para nomes consagrados como Kwes e Kae Tempest e que esteve mesmo para marcar presença na edição do ano passado, tendo posteriormente sido forçada a cancelar. Mas numa prova irrefutável de que há males que vêm por bem, assinou aqui uma prestação verdadeiramente vigorosa- pop enérgica de recheio eletrónico que pisca o olho ao disco sem o querer abraçar por completo, ficando-se antes pela sugestão que não passa despercebida. Erguendo a bandeira da boa disposição , e sobretudo da dança enquanto forma de renascimento espiritual e perseverança inquebrável, foi alternando entre temas novos do disco que aí vem (“Euphoric”, com data de lançamento prevista para o mês de julho) e alguns mais antigos, terminando com uma cover bastante satisfatória de “Running Up that Hill”, original de Kate Bush. Se esta edição foi lamentavelmente marcada pela chuva nos dois primeiros dias , Georgia revelou-se um autêntico raio de sol. Volta depressa , a banda sonora da nossa existência necessita da tua luz.
Outra mulher - soberba senhora , para sermos precisos - que se destacou e triunfou foi Alison Goldfrapp. Subindo ao palco com um traje absolutamente divinal ( aquelas botas azuis, com uma capa de lantejoulas a condizer, transmitiam uma confiança e uma elegância indescritivelmente magistrais) , lançou-se numa viagem celestial pelas explorações de electropop que compõem a extraordinária declaração artística do mais recente “The Love Invention”, pelo meio recuperando temas do passado dos Goldfrapp ( “Train” ou “Rocket”, por exemplo), mas sem nunca tirar os olhos do futuro. Mais do que um concerto de uma veterana consagrada, isto foi uma afirmação de renovada vitalidade , um grito de liberdade triunfal de atmosfera inebriante. Arriscamos até estabelecer uma ligação entre esta apresentação e a da Kim Gordon no ano passado: se ambas habitam universos sonoros distintos, convergem no modo como foram capazes de se reinventar a partir de um estatuto lendário, rejuvenescendo quando muitos optariam pelo conforto da estagnação. E isso é simplesmente formidável. Segura, encantadora no seu registo etéreo que espalha uma sensualidade algo misteriosa mas sempre reconfortante, Alison mostrou-se inquestionavelmente majestosa. É assim que a gostamos de ver.
Ainda no campo feminino, a britânica Holly Humberstone encantou quem pela sua pop doce e frágil, daquelas que ganha força através da exposição vulnerável, se deixou contagiar. Altamente confessional e simultaneamente grandiosa , começou a prestação ao som da estupenda “The Walls Are Way Too Thin” e terminou com esse grande hino que é “Scarlett” . Numa estreia que não será certamente uma despedida, a jovem Holly assinou um dos momentos mais fofos e felizes deste Primavera.
E se a chuva , por esta altura, invadiu o recinto sem remorsos, isso não impediu os The Comet Is Coming de assinar uma prestação altamente inspirada - talvez mesmo “ abençoada” por toda aquela precipitação. Liderados pelo carismático e inigualável Shabaka Hutchings, o homem para quem o saxofone é um portal para as profundezas de uma prodigiosa alma artística, espalharam aromas de um jazz cósmico em contato permanente com o pulsar de uma eletrónica vibrante. É o ritmo da dança aliado a uma espiritualidade palpável, o legado de tradições musicais africanas transportado para um presente dinâmico. O resultado foi idêntico ao das anteriores ocasiões em que por cá estiveram: fantástico.
O mesmo não dizemos de Kendrick Lamar, a grande atração deste dia e com toda a razão - não só pela fama de que goza, mas pela própria criatividade de estúdio que alimenta, em parte, o seu sucesso. Aliás, “Mr Morale & The Big Steppers”, lançado no ano passado, confirmou Kendrick como uma das figuras mais ambiciosas , talentosas e complexas no universo hip-hop, um mestre que honra e reinventa o estilo em doses iguais de mestria invejável. Nesse sentido, é completamente justificável o entusiasmo que a sua vinda provocou, e mesmo quem não era fã tinha, em geral, uma certa curiosidade para testemunhar o seu retorno.
Depois… Depois chegou o momento da verdade, e com ele veio uma amarga sensação de (alguma) desilusão. Dizemos “alguma” porque o concerto nem foi mau, mas ficou no ar a ideia de que podia ter sido melhor. Com um plano de fundo em que figuravam dois jovens negros e um aviso a clarificar que quaisquer tiros eram desnecessários - o legado do “Black Lives Matter”, em que o político se torna pessoal para muitos que sofrem com a discriminação e brutalidade policial, a pairar de forma penetrante- , Kendrick foi debittando os seus temas (lamentamos, já agora, a ausência de “Auntie Diaries”, uma das mais pungentes do novo disco) com eficácia mas, honestamente, sem grande chama, dirigindo um concerto com alguma falta de ritmo. Claro que sabe sempre bem ouvir uma “ Bitch, Don't Kill My Vibe”, mas o que esperávamos que fosse apoteótico , no final, foi simplesmente decente. E se é certo que a chuva medonha foi incomodativa, isso não pareceu prejudicar os The Comet Is Coming, que atuaram precisamente antes dele. Kendrick para sempre será grande; todavia, nesta noite em que até o primo Baby Keem se mostrou mais eficaz a nível de performance, não conseguiu aceder à grandeza que nele reside. Talvez para a próxima?
Dia 2
Um dos primeiros destaques deste segundo dia do Primavera - um dia cheio de coisas boas , mesmo com a chuva a teimar em não passar - aconteceu logo durante a tarde com a passagem dos norte-americanos Surf Curse. O grupo formado em Reno e agora sediado em Los Angeles brindou-nos com uma potente descarga de surf rock adoçado com um recheio de irreverência punk e sujidade garage, alternando entre a eficácia orelhuda e a garra indomável. Muito bom, a repetir no futuro, se possível em sala.
Muito bem estiveram também os irlandeses The Murder Capital, praticantes do revivalismo post-punk ao lado de compatriotas como os Fontaines D.C., mas aqui mergulhados em ambientes tão obscuros quanto calmamente enraivecidos ( o paradoxo resulta, acreditem), algures entre uns Joy Division e uns The Fall. Apoiados na bela novidade que é “Gigi's Recovery”, revelaram-se uma das surpresas do festival para muito boa gente.
Basicamente ao mesmo tempo atuaram os Shellac - sim, esses Shellac que estão no cartaz anualmente como banda residente. Repetitivo? No papel, sim, mas nada disso realmente importa quando o post-hardcore imbuído de noise que o trio formado por Steve Albini, Bob Weston e Todd Trainer destila continua impecável, numa familiaridade revigorante que insistimos em revisitar. E aqui ainda tivemos direito a escutar temas novos retirados de um álbum já gravado há ano e meio mas ainda não editado. De resto, “ Wingwalker”, essa valente malha que é também divertida de assistir ao vivo pelas poses de Albini e Weston a imitar um avião, e aqueles riffs bojudos de uma dissonância estridente que “lavam” a alma de quem vibra com demonstrações vitais de pujança sonora, mantêm-se irresistíveis. Ainda durante a tarde, destaque para o indie soalheiro ( e banhado efetivamente pelo sol, um acontecimento notável neste dia tão chuvoso) recheado de fuzz dos neozelandeses The Beths, uma proposta perfeita para o final de tarde que trouxe uma sensação de alegria e descontração ao recinto. Munidos de malhas fortes e apelativas - daquelas que carregam uma leve brisa de verão e a entregam suavemente aos nossos ouvidos - e liderados pela afável Elizabeth Stokes, constituíram uma excelente adição ao cartaz. Um regresso em Coura - ou nome próprio, porque não- seria ouro sobre azul.
Nota positiva também para Arlo Parks. A jovem sensação britânica ,que já tinha marcado presença no ano passado em Paredes de Coura, voltou a Portugal, agora com o novo “My Soft Machine” debaixo do braço, para nos acariciar a alma com aquela pop doce, a abraçar o calor da soul, que irradiou luz e afeto mesmo quando a chuva se revelava ameaçadora . Referindo como a estreia no nosso país tinha constituído um dos melhores concertos da sua vida - assim como para o resto da banda que a acompanha - , Arlo voltou a espalhar encanto, conquistando com aquela linda voz aconchegante e uma simpatia amorosa. Enfim, tudo nela nos soa radiante ,como um raio motivador de esperança que nos lembra que mesmo nos momentos mais negros é possível renascer com um sorriso.
E antes de passarmos para os nomes consagrados, uma nota de apreço aos irlandeses Gilla Band. Talvez devido ao horário em que subiram ao palco- à mesma hora que Fred Again- passaram algo despercebidos, mas a verdade é que foram responsáveis por um dos concertos mais estimulantes de todo o festival, sobretudo no campo das revelações. Post-punk contundente com elementos de noise e industrial, ali a fazer lembrar uns Pop. 1280 menos “corrosivos”, mas igualmente intrigantes. Entre a tensão e o “rasgo” ocasional de força apunkalhada a sugerir uma rebeldia controlada, saímos do concerto com uma enorme vontade de os rever- sobretudo numa sala como o Maus Hábitos ou o Understage. A manter debaixo de olho.
Um pouco antes, no Palco Porto, entraram em cena os míticos The Mars Volta, numa altura em que já chovia copiosamente. Contudo, mesmo com condições climáticas desfavoráveis, o coletivo de El Paso foi exímio no modo como se entregou à mais alucinante das explorações sonoras, erguendo um mundo onde estruturas prog de monumental aura cósmica conviviam com ritmos latinos de máxima sedução calorosa. Começar logo com a épica (não são todas?) “Roulette Dares( The Haunt Of)” é garantir um início fulgurante , e mesmo com a chuva a afetar ligeiramente a acústica (dependendo do sítio onde se estava, pois nas filas da frente tudo soava mais claro e definido), o concerto foi evoluindo de forma estupenda , com a magnificência de requintadas incursões instrumentais e a proficiência vocal de Cedric Bixler- Zavala a deixarem- nos rendidos , completamente boquiabertos , e a própria banda a ser dominada por uma vontade inabalável de atingir todo o potencial da sua exploração artística. No final,ofereceu um concerto que mais parecia uma escultura de sons construída em tempo real, coesa e colossal, colorida e pujante. Terminando com “Inertiatic ESP”, os The Mars Volta assinaram aquela que foi, até à altura, a melhor atuação do festival.
Algum tempo depois, vimo-nos confrontados com uma das habituais desvantagens típicas de um festival destas dimensões: as sobreposições, com Rosalía a decorrer ao mesmo tempo que Bad Religion. E se ainda fomos espreitar a intro do concerto da primeira - feita com a estrondosa e pulsante “Saoko” - rapidamente o nosso coração de puto punk ,sempre jovem mesmo quando o corpo envelhece , “obrigou-nos” a ver estas lendas incontornáveis que são os Bad Religion. E ao som da irresistível “American Jesus”, precedida pela intro “The Wreck of The Edmund Fitzgerald" do lendário e recentemente falecido Gordon Lightfoot, saltamos e vibramos porque carago, estávamos a ver uma banda da juventude, parte fundamental e indelével da banda sonora da nossa vida punk, e para aqueles de nós que o estavam a fazer pela primeira vez, ainda mais especial era.
Seguiu-se “ Los Angeles Is Burning” e cada vez mais se tornava óbvio que os Bad Religion até podem estar mais velhos , mas a idade é apenas um número quando o espírito permanece jovem e o coração para sempre grita rock. Isto foi uma linda , soberba e inspiradora demonstração de perseverança e vitalidade , um privilégio de importância imensurável para quem cresceu com estas malhas poder agora senti-las ao vivo e dizer que sim, que viu os Bad Religion a dar tudo com uma força impressionante e um carinho palpável- houve mesmo momentos em que ficávamos comovidos com o que estávamos a testemunhar… Foi tão puro, tão genuíno, tão fun.
Enfim, pouco mais há a dizer… Entre malhas que são hinos como “Fuck You”, “Recipe for Hate”, “Come Join Us”, “Epiphany” ou “Punk Rock Song” voltamos a ser miúdos inocentes em plena idade adulta, e soube mesmo bem. Pode ter chovido imenso neste dia, mas com as viagens de Mars Volta e a nostalgia de Bad Religion, saímos de lá de coração cheio e bem aquecido.
Dia 3
O terceiro dia do Primavera não tinha tantos nomes sonantes no cartaz e, por isso mesmo, acabou por ser aquele com menos gente no recinto. Todavia , não se pense que se tratou de um dia aborrecido, pois houve claramente coisas boas para ver, incluindo algumas das melhores ou mais intrigantes prestações de todo o festival.
Prova disso aconteceu logo ao final da tarde com a passagem dos Wednesday. A banda da Carolina do Norte tem dado muito que falar ultimamente - sobretudo desde a edição do mais recente “Rat Saw God” - e acabou por justificar todo esse hype com uma atuação super competente e muitíssimo agradável, uma bela sessão de indie portentoso e “rasgado", onde guitarras mergulhadas em distorção e canções de feeling 90s urbano convivem com ocasionais referências country, numa sonoridade tão evocativa quanto confessional. Uma banda perfeita para o Primavera - daquele indie empolgante e refrescante que o festival sempre soube receber; pelo meio , mensagens de apoio à comunidade LGBTQI + acrescentavam um toque político absolutamente necessário e relevante a um concerto altamente bem conseguido, onde canções tão íntimas que aqui soaram poderosas e maiores que o mundo facilmente aterraram no nosso coração. Que regressem o mais rápido possível, o reencontro mostra-se essencial.
Outra banda “de guitarras” que esteve magnífica - ao ponto de ter dado o concerto do dia, ou lá perto- foram os Built to Spill. O grupo do Idaho , que já tinha marcado presença na edição de 2019, assinou um regresso verdadeiramente inspirado e honestamente excitante , destilando malhas intemporais de um indie rock soberbo e nostálgico que frequentemente se deixa contaminar pelas explorações psicadélicas de guitarras fogosas. A escolha do Palco Plenitude para o concerto deu-lhe um toque de intimidade que acabou por resultar muitíssimo bem, tornando-o mais especial e “ underground” , como uma reunião unida da comunidade de melómanos que os queria ouvir… Foi mesmo bonito, quem nos dera que todos os concertos do Primavera originassem este ambiente.
Num set claramente inspirado - o seu único defeito foi ter terminado- , o final com a emblemática “Carry the Zero” do seminal “ Keep it Like a Secret”, aqui numa versão alargada, foi não só o encerramento perfeito, como um dos mais inesquecíveis momentos de todo o Primavera - a nossa alma “ chorava” de tão eufórica que estava. Caramba, não basta essa música ser um hino, como ainda a pudemos ouvir num formato mais épico… Somos mesmo sortudos. Obrigado, Built to Spill, sois grandes e eternos.
E por falar em concertos fenomenais, foi exatamente isso que Self Esteem- a aventura a solo de Rebecca Lucy Taylor, ex- Slow Club, proporcionou. Pop grandiosa, suntuosa e ostensivamente cinemática , recheada de fabulosos coros femininos e coreografias meticulosas que espalham elegância, soando esplêndida, cheia de vida , regada com uma paixão tão impetuosa que parece querer “engolir” o palco do mundo que a acolhe. Imaginamos estas músicas a serem cantadas em uníssono por uma multidão que nelas encontra a esperança para preservar - um pouco como a própria viagem de autodescoberta de Rebecca a conduziu à epifania que fez nascer este projeto transformado em plataforma de empoderamento feminino, para ela e para todas as mulheres que espera encorajar - , pelo que não conseguimos “ sacudir” a sensação de que a performance majestosa que testemunhamos merecia um palco tão grande quanto as suas aspirações megalómanas. Por outro lado, houve algo de belo e inspirador na intimidade aqui vivida, uma espécie de grito de libertação em local de “refúgio” para quem simplesmente queria sentir o calor aconchegante lançado por Self Esteem. E acreditem: com esta paixão, ela brilhará por muito mais tempo.
Passamos desta demonstração de feminismo para outra igualmente revigorante e elucidativa: a das Le Trigre , banda mítica que conta nas suas fileiras com a lendária Kathleen Hanna, vocalista dessa instituição do movimento Riot Grrrl que foram as Bikini Kill. Aqui numa toada mais dançável mas mantendo - e bem- a ferocidade do punk irreverente e selvagem que caracterizava a antiga banda de Hanna, contaram com uma enchente junto ao palco Super Bock e acabaram por protagonizar uma pujante sessão de electroclash irrequieto e alucinante , que fez pular muito , sim- nós estávamos junto às grades a dar tudo- , mas que também fez sentir e até pensar; sim, este foi um concerto que convidou à reflexão, essencialmente devido ao seu conteúdo político. Desde mensagens em prol da liberdade e justiça da comunidade LGBTQI+ , até desabafos brutalmente honestos sobre o impacto dos abusos sexuais, o discurso das Le Tigre soou tão urgente como as suas composições . Urge voltar a vê -las, e pede-se que continuem a pregar a mensagem.
Os headliners deste dia foram os Pet Shop Boys , efetivamente um nome consagrado no universo da eletrónica e música alternativa em geral, e do grupo fundado por Neil Tennant e Chris Lowe podemos dizer que cumpriram bem, mesmo que não tenham necessariamente deslumbrado. Todavia, é com um certo orgulho que agora já podemos incluir o nome deles na lista de concertos vistos, ainda que hoje estejam, talvez, ligeiramente datados.
Começaram por recordar “Suburbia”, envergando batas e máscaras de cor branca , como se tivessem saído de um laboratório musical, e desde logo que o espetáculo sonoro foi igualmente acompanhado por um grande espectáculo visual, com os dois mundos distintos a operarem com eficácia entre si. Pelo meio, ouviu-se uma compilação de dois êxitos - “Where the Streets Have No Name” dos U2 e “ Can't Take My Eyes off You”, gravada por Frankie Valli - e mais canções do seu próprio catálogo , como “ Opportunities ( Let's Make Lots of Money).” Foi perfeito? Não. Mas foi satisfatório , e nada mais se pedia… Tirando um palco com mais visibilidade . A sério, por favor.
Nesse mesmo palco que realmente não deixou muitas saudades vimos os My Morning Jacket, que na década de 2000 se afirmaram como um nome particularmente interessante no campo do rock- tanta atenção geraram , aliás, que até apareceram num episódio do “American Dad” de Seth MacFarlane, alguém se lembra ou viu?
Hoje, mesmo não gozando talvez da mesma relevância, permanecia, ainda assim, alguma curiosidade para os ver, e a verdade é que não saímos de lá desiludidos com o que nos foi dado. Jim James continua a ser dono de uma voz poderosa, que naquele registo mais agudo e magistralmente angelical chega mesmo a emocionar, e a sonoridade da banda - um rock alternativo que vai beber ao country e mesmo a algum rock dos anos 70, cuidadosamente adaptado a uma realidade contemporânea - ainda soa agradável aos ouvidos, especialmente nos momentos em que se dedicam de corpo e alma às incursões instrumentais exploratórias.
Num dia onde também se destaca a competência dos brasileiros Terno Rei, ali a recordar os primórdios dos Boogarins, ou de St.Vincent, que do pouco que ainda conseguimos ver, entre as atuações de Self Esteem e Le Trigre, dominou com a sua sedução pop cheia de classe, o saldo é claramente positivo.
Dia 4
Ao quarto dia o cansaço já se fazia sentir de forma penosa, mas ainda havia muito para ver, incluindo coisas importantes e , em alguns casos, mesmo raras , daqueles “cromos” que se tem de colecionar.
Mas comecemos pelo princípio, pela tarde em que os Unsafe Space Garden entraram em palco a destruir tudo ( metaforicamente , escrevemo-lo como um elogio) , com aquela marca de excentricidade que parece ir beber ao dadaísmo - ou então é uma “ loucura” contemporânea, sabe-se lá - com os gritos e os cartazes inventivos , aqui em tamanho maior, a acompanharem aquela sonoridade art pop ( uma maneira de classificar o que teima em ser inclassificável, e ainda bem) que faz deles um dos projetos mais promissores e imprevisivelmente entusiasmantes do panorama nacional.
Foi também por esta altura que os canadianos PUP cultivaram outro tipo de intensidade insana - aquela debitada por um punk feroz mas atento às sensibilidades melódicas, pop punk no seu melhor, resumindo- atirada com urgência para aproveitar o pouco tempo disponível e porque assim manda a tradição. Super eficaz, a agitação saudável na plateia a tornar tudo bem mais apetecível.
Falemos também dos Sparks , banda de culto para quem a pop é uma tela em branco em constante remodelação. Liderados pelos irmãos Mael- o dinâmico Russell nas vozes e o propositadamente estático Ron nos teclados intrincados - conceberam um espetáculo glorioso, não a nível visual mas através da interpretação de temas magistrais , temas que irradiam energia no mais elegante dos sentidos, e que sugerem a dança como celebração majestosa de uma música suntuosa , luminosa e sempre numa infinita exploração de si mesma, música livre que derruba fronteiras com um ânimo jovial.
Lúdicos , por vezes chegando mesmo ao absurdo (Ron a proferir, de forma cómica e monocórdica, “I found my thrill/ I found my thrill in Beverly Hills” em “ Shopping Mall of Love” foi só genial) , os Sparks assinaram um concerto de mestres , daqueles protagonizados por lendas ainda a viver o seu período áureo, tão fresco e contemporâneo quanto as bandas do amanhã.
Entre temas da novidade maravilhosa que é “ The Girl is Crying in Her Latte” (que aqui foi mudado para “pingo”) e clássicos indispensáveis como “ The Number One Song in Heaven” ou “This Town Ain't Big Enough For Both of Us”, os Sparks trouxeram bom humor , peculiaridade e excelência musical ao Primavera. Um autêntico tesouro, abençoados sejam.
E se a banda destes simpáticos excêntricos - termo aqui usado de forma carinhosa, só nos apetecia abraçá-los no final do espetáculo - foi uma revelação( ainda que já esperássemos que nos brindassem com algo especial, verdade seja dita) , Yves Tumor leva o prémio para maior desilusão do dia. Absolutamente grandioso em disco - Aliás , o mais recente “ Praise a Lord who Chews but which Does Not Consume” é já um candidato incontornável para qualquer lista de melhores do ano-, acabou por se perder ao vivo, mergulhado que estava na confusão de um som pouco cristalino, exageradamente elevado e a abraçar de forma tóxica a cacofonia. A própria postura deixou algo a desejar, quase como se ele próprio estivesse consciente de que isto não estava a resultar ( muito tempo passou, no início , a perguntar se o ouvíamos, e a pedir que aumentassem o volume do microfone), e no final, tudo isto acabou por ficar muito aquém das nossas expetativas. Continuaremos a celebrar a sua obra em casa - é demasiado excitante e arrojada para não o fazer - , mas , ao vivo, esperamos agora por dias de maior inspiração.
Todavia , com as deceções também vêm surpresas maravilhosas , e a maior delas neste dia foi a de Flowerovlove, jovem de apenas dezoito anos responsável por um dos mais deliciosos e brilhantes concertos de todo o festival. Caminhando pela pop sonhadora de suave brisa R&B, lançou um inebriante aroma de doce esperança que revigorou as almas já massacradas pelo cansaço. E pelo meio, num dos mais criativos e louváveis exemplos de interação em concertos que alguma vez vimos , convidou duas raparigas a subir ao palco para com elas conversar e criar uma ligação inabalável. Uma delas , a Marta , mencionou os olhos quando lhe perguntaram o que mais gostava nela, ao passo que a outra convidada, chamada Lauren, destacou a voz e aí… aí fez-se magia, com um trecho de Amy Winehouse a ecoar pelo Primavera com uma força descomunal. E é destes momentos mágicos que se fazem festivais .
Outro grande pequeno tesouro deste dia foi-nos dado pelos OFF!, esse supergrupo de hardcore que inclui o senhor Keith Morris, antigo vocalista dos Black Flag e membro dos Circle Jerks - ou seja, uma instituição dentro do estilo, lenda viva admirável. E se isso já era suficiente para nos aguçar o apetite, o concerto em si foi uma bofetada violentíssima de intensidade caótica, suada e irrepreensivelmente vigorosa, ainda mais irresistível pelo ambiente espetacular que aqui se respirava - mosh enlouquecido, talvez o mais animado que o Plenitude experienciou. Em palco, um saxofone que surgia ocasionalmente oferecia um toque de free jazz marado ao que foi , essencialmente, uma descarga devastadora de hardcore.
Um pouco depois , chegou a hora dos Blur, frase usada aqui de forma pouco precisa e algo leviana, admitimos, já que o tempo deles começou nos anos 90, naquela altura mais inocente e apaixonada em que o mundo - ou , pelo menos, a imprensa musical, que é por si só um mundo à parte - se deixou contagiar pela “Batalha da Britpop”, disputada entre os Blur e os Oasis, e parece continuar ainda hoje, motivado por uma nostalgia associada a uma banda que ainda insiste em fazer coisas novas , a criar quando já só podia recordar. Prova disso, aliás, é o novo álbum que em breve verá a luz do dia.
E já com alguns minutos de atraso( pontualidade britânica a ser ignorada com alguma graça, diga-se) subiram ao palco interpretando “ St. Charles Square”, passando depois por “ There's No Other Way” e “ Popscene”. “Beetlebum” retirada daquela que , achamos nós , é a fase mais cativante dos Blur - em que se afastaram dos bons caminhos da Britpop para se aventurarem pelos atalhos ousados de sonoridades mais experimentais -continua a bater imenso, é possivelmente a mais fabulosa canção que já compuseram e aqui mostrou-se novamente triunfal, sendo que o mesmo se pode dizer sobre “ Coffee & TV ”, pérola do final dos anos 90 cujo videoclipe com o adorável pacotinho de leite é uma memória querida para quem com ele conviveu na TV.
E enquanto os êxitos sucediam-se( “Country House” também tocou no coração, para sempre uma formidável peça de saudosismo soalheiro ), relembrando-nos como a música dos anos 90 não podia ter sido escrita sem os Blur( ou seria bem mais pobrezinha, convenhamos) , vislumbravam-se , aqui e acolá, ecos e sugestões do futuro próximo, deixando claro o lugar em que a banda britânica atualmente se posiciona: entre a nostalgia de um “ ontem” inesquecível, absolutamente glorioso, e a esperança por um amanhã promissor, tão sorridente quanto Damon Albarn se mostrou neste noite. Felizmente, em ambos os mundos permanecem relevantes. Confiantes e reconfortantes , os Blur ainda encontram muito sentido na sua existência - e nós ainda sorrimos com as visitas que nos fazem.
E nesse aspeto - o da relevância contínua - apresentaram-se bastante melhores que os “colegas” de Manchester - os New Order . Não negamos que ainda sabem proporcionar uma boa sessão de nostalgia - e quem lá vai recordar os clássicos (assim como “Love Will Tear Us Apart” dos Joy Division ) certamente que sai satisfeito , mas são particularmente prejudicados por um Bernard Sumner claramente frágil a nível vocal. Custa criticá-los porque a influência deles no mundo da música foi bem marcante , e é certo que os cortes de energia em nada ajudaram, mas para além de uma celebração revivalista, este concerto pouco mais acrescentou. Para muitos, contudo, terá sido suficiente.
Se para muitos este dia era sobretudo marcado pelo regresso dos supracitados Blur ao mesmo festival onde foram felizes dez anos antes, para alguns de nós havia outros nomes , com todo o respeito, ainda mais imperdíveis , duas bandas que inspiraram a nossa presença no Primavera por não sabermos quando - ou mesmo se - as voltaríamos a ver: os Karate e os Unwound.
Os primeiros , de Boston, soltaram uma dose envolvente de slowcore emotivo e possante, entre melodias que reverberaram pelo corpo enquanto uma garra latente e tímida sugeria uma explosão de post-hardcore que nunca se manifestou. Pelo meio, um baixo opulento “dançava” com as melodias evocativas da guitarra de Geoff Farina , “soprando” de forma tão sentida quanto “ rasgada” malhas nostálgicas que , ao lusco-fusco, adoramos reviver , malhas pujantes de um underground inigualável do qual os Karate foram possivelmente heróis insuficientemente celebrados. Aqui, contudo, aplaudimos a suprema viagem que a parca audiência tornou intimista e que os nossos corações engrandeceram com uma força eterna. Quando, já no final, o vocalista/guitarrista Geoff Farina agradeceu a quem, na década de 90, os trouxe a Portugal, dois pensamentos atravessaram-nos imediatamente a mente: quem nos dera ter lá estado e, mais importante, tragam-nos de volta, pois desejamos voltar a sentir na pele estas guitarradas imortais.
Pouco passava das duas da manhã quando entraram em cena os Unwound, ainda atuavam os Blur no palco principal. E se este foi um concerto para os mais corajosos dos resistentes - para aqueles que enfrentaram o cansaço com o intuito de concretizar este sonho que há uns anos seria uma utopia inalcançável, já que a banda ainda se encontrava separada - , alegra-nos poder dizer que a espera foi devidamente recompensada.
Logo ao som de “Abstraktions” o entusiasmo foi gradualmente florescendo - e como não, com esta emocionante peça de uma beleza que chega mesmo a ser comovente, melodias inebriantes a embalar a alma na ternura de um instrumental transcendente, como uma espécie de post-rock onírico que ecoa gloriosamente na mais bela noite de verão.
Mas se o início se deu desta forma poética e melódica , rapidamente o registo mudou para um tom bem mais agressivo de verdadeiro assalto post- hardcore e rasgo noise - pancadaria sonora ensurdecedora e vibrante , catarse esplendorosa arrancada por riffs de uma dissonância veemente , riffs angulares que engolem o espaço envolvente como um tornado massivo e implacável. “All Souls Day” foi uma das malhas supremas que desencadeou esta festa memorável, estado de transe que nos deliciava a alma enquanto punia violentamente a audição. Mas houve mais - “ Envelope” e a frenética “ Usual Dosage” foram outros momentos de garra excecional e inspiradora, o corpo a submeter-se ao arrepio que banhava o espírito em adrenalina.
Tudo durou cerca de uma hora , e foi a mais gratificante hora de todo o Primavera , inquestionavelmente. Uma honra indescritível estar lá, de madrugada, junto de incansáveis fiéis, a levar com tamanha descarga bruta que nunca pensamos poder testemunhar. Isto foi histórico, esplêndido e, mesmo com as nossas expectativas algo elevadas, surpreendentemente vital. No final, e depois de terem recordado um amigo que não pôde estar presente (uma bem sentida homenagem ao malogrado baixista Vern Rumsey, lamentavelmente falecido em 2020), voltaram ao registo inicial de contemplação atmosférica para fechar de modo delicado, numa melancolia paradoxalmente enérgica e ao mesmo tempo serenamente outonal( que bonito é cultivar esse sentimento em pleno verão) com “ Were, Are and Was or Is”, distribuindo flores pelos membros da audiência como um símbolo da beleza pura que se ergueu nesta perfeita despedida apoteótica. Foi essencialmente por este concerto( e mais uns quantos como bónus) que aqui viemos , e foi este o mais inesquecível de todos , a nossa alma melómana quase chorou lágrimas de euforia. Sem dúvida alguma, os headliners do nosso coração.
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sexta-feira, 23 junho 2023