Reportagem Amplifest 2012
Mais uma edição do Festival Amplifest no Porto, que se estendeu pelos dias 26, 27 e 28 de Outubro, e manteve a tradição de ser um festival de excelência que providencia alternativa aos amantes de música mais eclética e menos convencional, trazendo às salas de espetáculos portuenses vários nomes de interesse. Se em 2011, houve destaque para Bardo Pond, Jesu e Godflesh, foi no presente ano que o Amplifest nos trouxe os enormes Godspeed You! Black Emperor, inevitável foco de um cartaz que contou também com Barn Owl, Six Organs of Admittance e Oxbow. É no belo e cinzento Porto que a magia acontece e esta edição não foi exceção.
Sexta-feira, dia 26 de Outubro
O Amplifest começa assim, no seu primeiro dia, com um concerto bónus para quem reservou os seus bilhetes atempadamente, de uma banda mistério que mais tarde se revelou serem os Barn Owl, em aparição sucedânea nos dois anos do festival Amplifest. Num Passos Manuel lotado, a banda americana constituída por Jon Porras e Evan Caminiti deu um concerto envolvente e hipnotizante, com o seu drone de excelência mais apoiado nos sintetizadores, algo que constituiu a maior diferença em relação ao set do ano passado (set que consideram um dos pontos altos da edição anterior). Experimental e ambientalista, a única sonoridade da banda americana levou os festivaleiros por uma viagem quase que espiritual, onde a paisagem é o deserto californiano quente, mas sombrio. Um bom começo que augurava ainda melhores experiências.
Sábado, dia 27 de Outubro
Nada melhor que uma experiência cinematográfica para iniciar o dia seguinte - sim, porque experiência será a melhor forma de descrever Instrument de Jem Cohen, o documentário musical sobre os Fugazi, uma das grandes e míticas bandas post-hardcore dos anos 90. Jem Cohen capta de forma brilhante tanto o percurso musical como a mentalidade e a filosofia da banda norte-americana, cujos aspetos práticos envolviam uma política de preços baixos para concertos e venda de cds e a promoção do bem-estar do público (prevalece o pragmatismo na conduta ao vivo), tal como um estandarte político de tolerância e de progresso social. Assim, Instrument mostra como os Fugazi muitos inspiraram com o foco na música e somente na música, algo que não destoa da identidade deste festival.
Se a sala 2 do Hard Club ficou entretida com esta pérola documental, passam a encher a sala 1 da sala de espetáculos para assistir a Six Organs of Admittance, um dos grandes nomes do festival. A banda de Ben Chasny, que sempre nos habituou a um folk psicadélico algo drone, envereda assim por um rock psicadélico eletrizante que abanou a sala portuense e apanhou alguns de surpresa. Com o recente Ascent (2012) na mala, e agora em formato trio, Chasny mostrou-se rei do rock durante pouco mais de uma hora, embora os temas novos percam substância comparativamente ao material anterior. Ressaltamos, no entanto, o contraste entre a voz única de Chasny e o abanão de uma sonoridade quase no stoner rock, que apesar de interessante nunca acabou por deixar grande marca. Num registo semelhante, os White Hills apresentaram, novamente mudando de sala, o novo Frying On This Rock aos amantes da música, com temas como “Radiate” e “You See You Dream” a demonstrarem que complementos extensivos e excessivos funcionam pior, mas quando a banda norte-americana joga a seu favor, com rock espacial duro e puro, tem tudo para criar óptimos momentos ao vivo. Os portugueses (e não só, contando este ano o Amplifest com uma plenitude de estrangeiros no seu público) pareceram agradados, no entanto, e contra isso nada se pode afirmar.
Os próximos a ocuparem palco no Hard Club são os Bohren & der Club of Gore que, para além de oferecerem uma sonoridade muito seletiva, são igualmente seletivos na escolha dos seus concertos ao vivo. Nestes tudo é sombrio, desde as vestes negras, a diminuta luz em palco e a solidão de um jazz noir que se junta ao um ambientalismo doom, desesperado e sufocante. “On Demon Wings” e “Midnight Black Earth” são temas de destaque do set da banda da Alemanha de leste, que apesar de robótica e bizarra a comunicarem ao público, é completamente hipnotizante numa performance que durou uma hora, mas pela qual não se dá passar o tempo. Será único o defeito de todas as particularidades do som dos Bohren talvez não se transmitirem tão bem ao vivo, à parte do enorme saxofone de Christoph Clöser, no entanto, foi certamente um dos destaques desta primeira noite.
Se os portugueses Process of Guilt ficaram encarregues de por pé a fundo no doom metal do outro lado do local base do Amplifest, foram os Amenra as verdadeiras estrelas da noite. Foi preciso respirar fundo para aguentar a autêntica tour de force da banda belga, que impõe um sludge metal fortíssimo, à Neurosis, que cria uma atmosfera autêntica e dominante. Mass V está para sair no fim de 2012, mas foram os temas de Mass IIII que ditaram o alinhamento, dando-se destaque à explosiva “De Dodenakker” que ofereceu a público uma nova maneira de explorar um som mais extremo. Fica na memória então, como um dos melhores concertos do Amplifest 2012.
Os portugueses RA & Löbo tiveram a tarefa inglória de sucederem a muralha de som dos Amenra, mas não se saíram nada mal.Löbo, com o post-rock/drone a que já nos habituaram, seguindo-se de Ricardo Remédio (RA) em andanças mais eletrónicas e batidas mais sistemáticas, conseguiram ainda reunir uma considerável plateia na sala 2 do Hard Club. Acaba-se, assim, a noite com os resistentes a reunirem-se n’O Meu Mercedes, por volta das duas da manhã, para uma listening party da apresentação mundial de Honor Found in Decay (2012), dos Neurosis - iniciativa engraçada para um convívio alargado. E amanhã levanta-se cedo que o dia é longo.
Domingo, dia 28 de Outubro
Começa-se o último dia do Amplifest 2012 na Sé do Porto, com uma agradável surpresa. Embora não tenha sido nos claustros, Jozef Van Wissem trouxe ao público do Amplifest as suas belas melodias de alaúde, numa atuação tão modesta e minimalista como o seu próprio material. O conforto do alaúde dedilhado juntamente com todos a assistirem a Van Wissem sentados no chão fez com que o concerto parecesse curto e acabasse sem notarmos. Mais um exemplo da variedade de artistas que este festival traz ao público português.
Os concertos no Hard Club começam com os Black Bombaim, na sala 1. Os barcelenses certamente não serão estranhos a palcos portugueses, no entanto, foi um prazer vê-los de sala compensada para mais uma sessão de rock psicadélico mais que competente. Seguem-se os Necro Deathmort, que marcaram o palco secundário com uma atuação de contrastes. Pioneiros de uma fusão da música electrónica experimental com o doom, a banda londrina conseguiu entusiasmar a hoste que os observava. Se a aceitação foi clara, também ficou connosco a impressão de que os Necro Deathmort jogam a seu favor quando não caem demasiado no lugar comum das guitarradas doom, e embarcam nas desarmonias electrónicas que entusiasmam e contagiam. The Colonial Script (2012) foi o álbum a apresentar nesta estreia em Portugal dos músicos de Londres.
Não há nada melhor que uma atuação fora do baralho para desenjoar um pouco dos temas e géneros prevalentes neste festival – e se os podemos descrever será seguramente com a etiqueta de pouco convencional. Bizarro, extravagante até. São os Oxbow, em versão Duo, que nos surpreendem neste segundo e último dia do festival. Normalmente são quatro, mas apresentam-se Eugene S. Robinson, na voz, e Niko Wenner na guitarra elétrica para desnortear o pessoal com guitarradas valentes e pouco harmoniosas e um poder vocal estrondoso que não passa indiferente. Digamos então que a voz de Eugene Robinson e a sua postura extravagante em palco, onde berra, esmurra o ar e até se despe, são as mais valias de um dueto que por si só já apresenta temas incríveis, pouco habituais mas com qualidade a transbordar. “She’s a Find” e “The Valley” são alguns desses exemplos de uma sonoridade de blues desconjuntados, naquilo que poderá ser um rock verdadeiramente avant garde. Fica para recordar.
Passamos para o outro lado do recinto “base” do Amplifest no Hard Club, com uma retrospetiva da carreira de vídeos musicais dos Isis (“Isis: The Videos”), incluindo a visualização de um exclusivo, reforçando aqui a aposta da organização de manter um ambiente variado e interessante no festival. A visualização de “In Between the Notes”, uma curta metragem documental de William Farley sobre Pandit Pran Nath e a sua influência na música indiana, também fez parte do cartaz deste ano, marcando presença no intervalo entre os dois grandes últimos nomes do último dia (daí que tenha sido um pouco abandonado para aqueles que preferiram guardar lugar para o que se seguia).
Segue-se o trio de poder dos Ufomammut, prontos a lançar um tsunami de ondas sonoras para cima de todos os seus admiradores, naquela que foi a penúltima atuação do Amplifest 2012. Em digressão europeia para apresentar Oro na sua totalidade, nas suas duas metades Opus Primum e Opus Alter, a banda italiana deu um concerto excelente, marcados por uma entrega e uma paixão de admirar. Se provocaram abanões de cabeças ou vénias, não sabemos, no entanto o sludge rock cheio de psicadelismos soube encantar o público do Amplifest. As projeções feitas na tela por detrás dos músicos, aliados à música, muito contribuíram para o estabelecimento de uma atmosfera de odisseia no espaço brutal e mortal, como os Ufomammut melhor sabem fazer.
A banda mais esperada deste festival teve a honra de terminar as festividades – falamos pois dos colossos do post-rock que são os Godspeed You! Black Emperor. Concerto indiscritível da instituição americana, que para além de ter revolucionado o seu género, marcou a música para sempre. São cenários de esperança sob a desolação, da luz ao fundo do túnel depois de uma gelada viagem sombria. HOPE, estampada nas projeções de 16 mm é o tema prevalente no mais recente ‘Allelujah! Don’t Bend! Ascend! que marcou um regresso ao mundo e aos palcos, desde o fantástico Yanqui U.X.O., de uma década atrás. Os God’s Pee, como brincam no merchandising e até dentro da capa do mais recente álbum, são testemunho de uma banda cujo peso e talento são tão indescritíveis que lançam uma aura de misticidade por onde passam – e o Hard Club não foi exceção. ‘Hope Drone’ marca o tom de sufoco sonoro de introdução, seguido da recente ‘Mladic’, que se prova valente ao vivo, com instrumentalização quase perfeita de Efrim Menuck e companhia. No entanto, se todo o set de duas horas manteve um nível de qualidade mais do que superior, foi em ‘Monheim’ (parte de ‘Sleep’) que se experienciou um dos mais belos momentos de música ao vivo. O hino às memórias em Coney Island foi arrepiante e um autêntico monstro de emotividade a transbordar, de uma maneira que apenas os Godspeed conseguem orquestrar. Depois de tamanho monumento, foi pena o concerto ter acabado numa nota pior - a raridade ‘Behemoth’ perde algum impacto ao vivo, talvez por ser abusiva no drone, e devido a uma falha técnica numa das guitarras foi impossível tocar “The Sad Mafioso”, um dos grandes temas do coletivo canadiano. Não há dúvida, no entanto, que os Godspeed sabem o que fazem e que a sua ausência foi bem notada no panorama musical, que ansia por autênticos fenómenos como estes que redesenham o que é a música para cada nós. Nós ficamos gratos por ter assistido ao melhor momento do festival Amplifest 2012.
Com o terminar do último dia, resta-nos dizer que é de louvar a Amplificasom, que monta um festival destes tão único com poucos ou nenhuns apoios, que apesar dos seus limitados anos de existência, mantém a sua identidade e utiliza os espaços e recursos como ninguém. Conta também com o leal público que reconhece que o Amplifest é uma experiência diferente de eventos ao vivo em Portugal – é muito rock e pouco stress, durante um fim de semana memorável.
Fica a esperança que, para o próximo ano, consiga ultrapassar-se novamente.
-
terça-feira, 26 fevereiro 2013