Reportagem Amplifest 2013
Dizer que a Amplificasom é uma instituição da cidade do Porto seria pouco para descrever o que esta tem feito nos últimos anos pela cidade. Qualquer pessoa que tenha vivido no Porto e esteja minimamente atenta ao que se passa em termos musicais já se deparou, sem dúvida, com um evento da Amplificasom e quase de certeza que já foi a uns quantos.
O Amplifest é o auge do trabalho da promotora nacional, tornando-se uma pedra basilar da cena cultural underground do Porto, do país e da Europa. À 3ª edição, o Amplifest é um festival que reúne pessoas acima de tudo, pessoas que tratam a música e a arte como religião, e dedicam uma parte enorme e apaixonada das suas vidas a ela, quer estejam a tocar no palco, a ver tocar no palco, a vender discos no corredor, na bilheteira ou a carregar amplificadores.
Porque este não é só um festival de música, foi com um filme que começou. Black Mass Rising consiste numa montagem artística e experimental de imagens, ao som de bandas que poderiam perfeitamente tocar em eventos da Amplificasom (algumas até já o fizeram), no entanto, a Amplitalk, uma novidade no evento, em que se conversa com um artista ou um agente cultural de alguma forma, parecia, e foi, bem mais aliciante. Foi Walter Hoeijmakers que se fez ouvir durante 45 minutos, o criador do festival holandês Roadburn, um evento que serviu sem dúvida de inspiração a este a que assistimos no fim-de-semana passado, tanto formalmente como em ethos, falou sobre a sua vida e a do festival e como o Roadburn é a vida dele e a sua forma de a viver. Não é a primeira vez que vemos esta posição defendida no Amplifest, como por exemplo no filme Blood, Sweat + Vinyl, que foi apresentado na 1ª edição do festival, onde Walter teria encaixado perfeitamente.
A música finalmente começou com Zatokrev, com um sludge sujo e agressivo, despertando o primeiro público do festival. Bem mais criativos e originais, os Downfall of Gaia deram um concerto abrasivo e portentoso. A banda alemã mistura influências modernas de post-metal, crust e screamo, num som único e transcendente, incitando um público que recebeu tanto quanto estes queriam dar. Não admira que no final a banda tenha admitido que tenha adorado vir ao Porto, e é, de facto, difícil pedir melhor público e organização do que no Amplifest.
O primeiro grande nome do festival foram os Year of No Light, com um concerto à base do mais recente Ausserwelt e do ainda por sair, novo álbum Tocsin. Foi um concerto de altos e baixos, os baixos evidentes nas partes mais prolongadas de guitarras lentas, que soaram a falta de ideias, mas quando despertava para algo mais pesado, auxiliado pela intensidade que duas baterias criam, deram luz a momentos pujantes e intensos. Também as partes mais calmas foram frequentemente muito bonitas e criativas. Estes momentos fizeram sem dúvida jus ao nome e estatuto que a banda têm.
Se no ano passado Eugene S. Robinson, com os Oxbow Duo, tinha preenchido o lugar de personagem excêntrica e idiossincrática, desta vez foi Carla Bozulich, com os seus Evangelista, a mostrar esse lado estranho e intenso ao público. Os Evangelista tocaram uma boa parte de músicas novas, ainda assim tocando “Winds of St. Anne” de Hello, Voyager e “Pissing” e “Baby, That's The Creeps” do álbum em nome próprio da vocalista e guitarrista, tendo esta acabado o concerto de forma portentosa, descendo ao palco, abraçando-se a pessoas do público e cantando na cara deles “Can you feel it? / Baby, that's the creeps”, um momento imponentíssimo e assustador, indubitavelmente um dos pontos altos do festival. Porém, o concerto seguinte não foi menos idiossincrático: os deafheaven, cujo recente Sunbather foi muito aclamado pelas mais variadas publicações musicais internacionais, deram definitivamente o concerto mais emotivo, intenso e libidinoso do festival, muito por culpa do vocalista George Clarke. Cobrindo grande parte do novo álbum, Clarke entregou-se em palco como muito pouca gente o faz, pelo meio dos seus gritos angustiados, numa personificação de demência, semelhante a um exorcismo. Isto tudo nada seria se a música não tivesse correspondido. Não só correspondeu como excedeu todas as expectativas. As músicas de Sunbather ganham uma intensidade e beleza que em álbum têm mais dificuldade em passar, e por fim, “Unrequited” do glorioso Roads to Judah destruiu o pouco que faltava destruir da sala 1 do Hard Club. À saída da sala, George Clarke e Kerry McCoy sentaram-se nas cadeiras conversando amigavelmente com quem quisesse falar com eles, mas não foram só eles, qualquer pessoa teve a oportunidade de meter um pouco de conversa com os Aluk Todolo, Russian Circles ou Chelsea Wolfe, algo que não é em qualquer ocasião que se consegue ver. Mas não eram só os músicos a deambularem pelos corredores do Hard Club - entre folhear os CDs e vinis, contemplar as t-shirts e conversar com os vendedores (já para não falar da lindíssima exposição de David D'Andrea), a oportunidade do público de passear no corredor do Amplifest é parte integral da experiência do festival.
Entretanto, o nome do aguardado concerto seguinte era, ainda, mistério. Quatro membros em palco tocam um post-rock agressivo, algo familiar. Entre músicas alguém grita “Quem são vocês?”, em palco, riem-se, um sinal de que tinham entendido a pergunta. Mais tarde, revelam ser os Catacombe, uma banda nacional com uma quantidade significativa de fãs, e que estavam a apresentar o novo álbum pela primeira vez. O estilo não surpreendeu e pouco impressionou, não gosto de dizer que o post-rock está morto, até porque acredito piamente que não está, mas que há muita repetição dentro do género é inegável, e os Catacombe parecem ser vítimas disso, por muito que a música não seja destituída de interesse. Similarmente, seguiu-se uma banda que também expõe as suas influências de forma clara, os Uncle Acid & The Deadbeats tocam um rock psicadélico agressivo numa mistura do psicadelismo dos 60s e 70s e o moderno stoner, num resultado sem dúvida cativante e viciante, mas em que as músicas raramente ressaltavam umas das outras, não sendo, no entanto, um concerto aborrecido. Pela primeira vez, à 3ª edição, um concerto no Amplifest começou significantemente atrasado, e devido à precisão horária dos transportes públicos do Porto, foi com pena que não pude assistir a HHY & The Macumbas, depois de um concerto muito bom no Milhões de Festa passado. Ficará para a próxima.
O primeiro grande evento do segundo dia de festival foi o concerto de Aluk Todolo. Não só grande em importância como em duração, os Aluk Todolo tiveram direito ao maior tempo de concerto de todo o festival, para tocarem na integra o mais recente álbum Occult Rock durante 1h40, muito à semelhança dos Ufomammut na edição anterior, que também tiveram direito a um espaço maior no horário para tocarem o seu álbum duplo na íntegra. O facto da organização permitir isto é mais um sinal do interesse genuíno na música em si, na banda e no público, e a boa fé que demonstram. Numa mistura vigorosa de krautrock, noise rock e claras influências de metal, os Aluk Todolo deram um concerto que justificou a longevidade, incrivelmente energético e arrasador, nunca cansativo, num dos momentos definidores do festival. Em palco, pendurava-se um lâmpada movida pela guitarra, que iluminava os 3 elementos.
De seguida veio mais um dos pontos incontornáveis do festival, a actuação da mística Chelsea Wolfe, a artista norte-americana, pela primeira vez em Portugal, apresentando Pain is Beauty, deu o concerto mais bonito e espiritual do Amplifest. Correndo o lindíssimo novo álbum e passando por algumas do anterior Apokalypsis, entre outras músicas, Chelsea provocou uma aura incaracterizável na sala 1 do Hard Club. Por entre momentos de extâse etéreo como “Sick” ou “House of Metal”, a uma maior pujança como em “Tracks (Tall Bodies)” à simplicidade tenra de “Lone”, o concerto de Chelsea Wolfe foi uma experiência única e memorável.
A maior personalidade a pisar os pés de um palco do Amplifest este ano era sem dúvida Kim Gordon. A baixista dos venerados Sonic Youth veio com o seu novo projecto Body/Head, com Bill Nace. No entanto, foi provavelmente o concerto mais infeliz de todo o festival. Eu sou um apreciador de noise e a forma como é possível jogar criativamente com puro ruído e mesmo aleatoriedade, mas Body/Head foi apenas uma desinspirada concentração de ruído com Kim Gordon balbuciando de forma totalmente não apelativa e francamente desagradável, muito ao contrário da forma como se mostra quando toma os vocais em músicas dos Sonic Youth. Após este rumo despropositado no line-up, vieram os Katabatic, que, similarmente aos Catacombe, exploram muitas ideias já mais que exploradas. Ainda assim, a banda portuguesa, mostrou maior variedade e ideias do que a banda surpresa do cartaz, passando por momentos mais intensos e pesados, sem nunca no entanto serem surpreendentes.
Como já referi, fazer post-rock nos tempos que correm e desafiar o seu universo é cada vez mais difícil, mas ainda é possível evitar lugares comuns de forma criativa mantendo-se ligado ao género, e os mestres disso são os Russian Circles. Pela 5ª vez em Portugal pela mão da Amplificasom, a banda de Chicago veio apresentar o novíssimo Memorial, mas com uma setlist variadíssima, incluindo antigos clássicos com “Carpe”, “Harper Lewis” ou “Youngblood”, que fechou o concerto, ao contrário do que nos tinham habituado em tours anteriores, onde “Death Rides A Horse” costumava ser o momento climático final. No entanto, a sua ausência é justificada, após a terem tocado em praticamente todos os concertos desde a criação da banda. Também no encore veio a faixa título de “Memorial”, com a participação de Chelsea Wolfe em palco, no momento mais solene e misterioso do concerto. É difícil ser impressionado por um concerto de uma banda pela 4ª vez em pouco mais de 3 anos, mas faz-me feliz admitir que os Russian Circles o fazem continuamente e inabalavelmente, dando um concerto intenso, pesado e consistentemente dinâmico, muito devido às capacidades e criatividade dos três músicos em palco, cada um fazendo uso do seu instrumento de uma forma extremamente inventiva. Foi impossível não chegar ao fim do concerto embebido em suor e dores de pescoço, e ter deixado todas as energias para trás, no entanto, para surpresa de muitos, havia um carregador de energia em Putan Club. O cancelamento de Pharmakon, por motivos de saúde, foi um balde de água fria para muita gente. O projeto de power electronics de Margaret Chardiet foi, então, substituído por Putan Club, banda do guitarrista e vocalista dos queridos da Amplificasom, L'Enfance Rouge. A primeira grande surpresa do concerto foi a disposição dos músicos na sala, ao contrário do habitual palco, usaram a plateia, tornando assim um ambiente mais caótico e intimo. O público reuniu-se à volta deles e foi atacado por uma mistura de noise rock/no wave com batidas industriais, com uma energia extremamente agressiva e contagiante, tornando impossível não ser infectado pelo espírito depravado da entrega dos Putan Club ao concerto. Não é possível ficar feliz pelo cancelamento de Pharmakon, mas os Putan Club não mereciam o Mercedes, e o seu espaço claustrofóbico, e tiveram a oportunidade de proporcionar um concerto muito melhor e a um público muito maior. Espero sinceramente que esta não seja a última vez que os vejo.
Assim chegou ao fim do Amplifest, a impressão final é enorme, surpreendentemente sempre superando expectativas, ano após ano. A organização é intocável, a sua dedicação à música e à cultura é nada menos do que imensamente louvável, e conseguirem proporcionar um evento com este impacto é extraordinário. Não gosto de sentir que estou a bajular, mas neste caso, todos os adjetivos são merecidos.
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Organização:Amplificasom
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quinta-feira, 24 outubro 2013