Reportagem Amplifest 2014
DIA 1
Há que admitir: o Amplifest, mais que um festival, é uma experiência cultural fascinante. Ao longo de um fim-de-semana, tivemos concertos, filmes, exposições, palestras e ouvimos discos. Também socializamos, vimos a Invicta em todo o seu esplendor, divertimo-nos, aprendemos e abandonamos o Hard Club, já na madrugada de segunda-feira, com uma satisfatória sensação de enriquecimento espiritual, depois de testemunharmos uma serie de bandas e artistas a derrubarem as fronteiras da arte musical.
Numa clara tentativa de quebrar a hierarquia normalmente presente em festivais, a quarta edição do maior evento anual da Amplificasom começou logo com um dos concertos mais esperados pelo público- o dos doomsters YOB. Adoptando um setlist bastante concentrado no novo “ Clearing the Path to Ascend” – interpretado na integra – o trio tem no seu carismático líder Mike Scheidt um senhor de uma voz possante, que extrai monumentais riffs da sua poderosa guitarra. Numa prestação arrebatadora, o final com a épica “Marrow” – um raio de luz que contrasta com a escuridão dos restantes novos temas – fechou com chave de ouro um regresso triunfante.
Quanto a Peter Brötzmann, o saxofonista/clarinetista alemão, acompanhado pelo impressionante baterista britânico Steve Noble, mostrou a todos os presentes como se faz free jazz de qualidade, utilizando o seu instrumento de forma criativa e com o objectivo de alcançar novos territórios de experimentação sonora.
Com a chegada de Marissa Nadler, viveu-se um dos momentos mais emotivos deste evento. Com linhas de guitarra folk tão delicadas quanto as pétalas de uma rosa e uma voz meiga mas arrepiante, a bela artista norte-americana encantou corações, enchendo a negra sala do Hard Club de sons contemplativos, daqueles que aquecem a alma sem nos deixarem num genuíno estado de felicidade. Acompanhada pela violoncelista e teclista Janel Leppin, Marissa Nadler trouxe ao Amplifest uma aura intimista semelhante à de Chelsea Wolfe, deixando claro que os elogios tecidos pela imprensa e fãs ao mais recente disco “ July” (no qual se baseou o setlist) são mais que merecidos.
Seguiram-se os Pallbearer, que provaram que o hype que os acompanha desde a edição de “Sorrow and Extinction” – intensificado com o novo “ Foundations of Burden” – é plenamente justificado. Reproduzindo na perfeição a magia que criam em estúdio, os norte -americanos protagonizaram uma actuação enérgica e apaixonada. Apesar de serem vistos como uma das mais refrescantes propostas dentro do movimento doom metal, os rapazes de Little Rock partem para uma eclética exploração sonora, cuja finalidade é a consolidação de uma identidade bem vincada. Com uma confiança notória em palco (ao ponto de não ficarem mal caso actuassem na sala principal), envolveram a audiência num clima tão selvagem quanto introspectivo.
E o que dizer dos Swans? A banda de Michael Gira provoca reacções extremas: uns endeusam o sexteto, outros não compreendem o manifesto artístico dos nova- iorquinos -sobretudo ao vivo. Verdade seja dita, é preciso ter um ouvido treinado para apreciar as aventuras de intensidade sonora nas quais o grupo embarca livremente. Assistir a um concerto dos Swans tem um efeito catártico: somos violentamente atacados por ondas de ruído metódico que nos destroem o corpo mas purificam a alma, e, no final, já suados e emocionalmente esgotados, sentimo-nos bem, com as memórias da experiência bem guardadas nas gavetas da nossa mente. Nesta ocasião, a banda deu um concerto longo, de duas horas e meia; no entanto, para os fãs, cada momento foi devidamente valorizado, numa passagem que deu primazia a novos temas como “ A Little God in My Hands” ou “ Just a Little Boy”, tendo igualmente recordado capítulos mais antigos como “ The Apostate” e apresentado novidades inéditas.
A tempestade não abrandou depois dos Swans, mas ficou mais assustadora e forte com a aparição, sobre uma sala enevoada, dos dinamarqueses Hexis – autores de uma devastadora mistura de black metal e hardcore. Com um jogo de luzes esquizofrénico, semearam o caos e revelaram-se a banda sonora perfeita para um eventual apocalipse.
Por outro lado, a actuação de Pharmakon ficou um pouco aquém das expectativas. Apesar da fusão decadente de industrial, noise e power electronics de Margaret Chardiet ser a receita perfeita para uma sonoridade aterradora e doentia, a estreia em Portugal acabou por não ser memorável, talvez devido ao cansaço acumulado que nos impediu de apreciar como deve ser a brutalidade do trabalho da artista nova - iorquina – mestre de vocalizações demoníacas e sintetizadores perturbadores, que em palco parece expulsar todas as energias negativas de uma forma particularmente extrema.
Depois dos momentos de pura e implacável intensidade sonora, Ben Frost proporcionou o doce relaxamento que o nosso corpo e alma tanto necessitavam. Acompanhado por Thor Harris, dos Swans, nas percussões, o músico australiano actualmente radicado na Islândia construiu abstractas paisagens sonoras de carácter dissonante, complementadas em certos momentos com meticulosas batidas que elevaram os drones de Frost a novos estados de intensidade espiritual.
Por falar em intensidade, os portuenses Sektor 304 – a banda surpresa do festival – testaram a resistência do Mercado Ferreira Borges através de uma sessão de industrial old school de influências tribais, numa amálgama infernal de percussão, contrabaixo, maquinaria, vozes guturais e o uso de objectos para fins artísticos (para além das habituais projecções), encerrando da melhor maneira a primeira etapa desta maratona de concertos.
DIA 2
O segundo dia do Amplifest voltou a oferecer-nos vários motivos para abandonarmos o conforto do lar e entrarmos no vermelho imponente que reveste o edifício do Hard Club.
Logo no início, o sexteto alemão Black Shape of Nexus subiu ao palco da sala 1 para uma pujante descarga de doom, sludge e drone, onde destacamos o poder dos riffs e a actuação endiabrada do vocalista Malte Seidel. Há aqui uma constante alternância de sons entre o groove que honra o legado da cena sludge de Nova Orleães e uma névoa de feedback que nos conduz para atmosferas mais etéreas, tudo isto interpretado com uma força descomunal.
Num registo menos intenso, os Bosque tornaram a negra sala do Hard Club ainda mais escura com o seu funeral doom carregado de uma agonizante melancolia, mas, apesar da indiscutível qualidade do seu trabalho, a música que produzem resulta consideravelmente melhor em disco do que ao vivo.
O mesmo não se pode dizer dos britânicos Conan – uma das mais surpreendentes bandas saídas do prolífero movimento do doom metal. Ao vivo, o trio de Liverpool transforma-se num esmagador tanque de guerra sonoro. Armados com um baixo avassalador e riffs capazes de destruir cidades, fazem do palco um violentíssimo campo de batalha. A participação de Malte Seidel, dos Black Shape of Nexus, em “Hawk as Weapon” ajudou a intensificar uma prestação monstruosa e animalesca.
Devido a problemas familiares, os Urfaust viram-se obrigados a adiar a sua actuação para a edição de 2015 do Amplifest, visto que o vocalista e guitarrista IX permaneceu na Holanda a cuidar da filha – attitude mais que compreensível. Todavia, há males que vêm por bem e, numa tentativa de remediar a situação, o baterista VRDRBR juntou-se a André Coelho e João Filipe, dos Sektor 304, e ainda a Jan, dos Black Shape of Nexus, para uma bela jam session de cariz experimental, onde as percussões de João coexistiram harmoniosamente com a bateria de VRDRBR, ingredientes fundamentais que, aliados às camadas de drone e às vocalizações cavernosas, conjuraram uma atmosfera decadente.
Ao mesmo tempo que os Wolvserpent enfeitiçavam a sala 2 com a sua diabólica poção de black metal, doom e drone, num dos concertos mais arrepiantes deste segundo dia, decorria no Main Floor uma palestra sobre o negócio muitas vezes inglório que é a promoção de concertos. Uma boa oportunidade para aprender e colocar questões sobre esta faceta do negócio da música.
Com os Wovenhand, assistimos a um dos mais inspirados momentos deste evento. A edição do mais recente “ Refractory Obdurate” viu a banda liderada pelo carismático David Eugene Edwards enfatizar a componente mais pesada do seu puzzle musical, o que originou uma actuação naturalmente mais rica em distorção sem, no entanto, ignorar a melodia– a cover de “ Horse Head Fiddle”, dos 16 Horsepower, foi um exemplo disso, juntamente com a interpretação a solo de “ Whistling Girl”.
De certa forma, esta prestação pode ser descrita como a segunda mais intensa deste fim-de-semana – o primeiro lugar indiscutivelmente ocupado pelos Swans – sendo que aqui a intensidade, tal como a dos nova-iorquinos, é tão sonora quanto espiritual. E ecléctica, claro, pois a arte dos Wovenhand é impossível de ser fielmente catalogada: há folk, country, post-punk, gótico… tudo o que Edwards deseje que o seu projecto seja.
Quanto aos Cult of Luna, a memorável passagem dos suecos pelo mesmo local em Janeiro de 2013 ainda estava fresca na memória de muitos fãs, mas este regresso mostrou uma banda em piloto automático, a interpretar hinos como “Ghost Trail”, “Vicarious Redemption” ou “ Dark City, Dead Man” de forma mecânica e desprovida da paixão que caracterizou as actuações do grupo em ocasiões passadas. Não os podemos acusar de terem dado um mau concerto, mas ficamos com a sensação de que podiam ter feito melhor… muito melhor. Por outro lado, a verdade é que após a digressão de promoção a “ Vertikal”, as aparições de um dos principais nomes do movimento post- metal tornaram-se cada vez menos frequentes – aliás, a presença dos Cult of Luna no Amplifest encerrou o calendário de concertos do colectivo de Umeå para 2014 – e essa falta de calo de estrada poderá justificar a postura que aqui exibiram, como se a vontade de estar em casa fosse superior ao desejo de subir ao palco e fazer história. Ainda assim, a nível de pura execução foram bastante competentes, além de que a qualidade das suas composições é inegável.
Para terminar, nada como um banho de suor provocado pela tempestade de hardcore dos VVOVNDS, que voaram da Bélgica de propósito para actuar no Amplifest. Tal como os Hexis, a formula consiste numa crua e ensurdecedora receita musical que não deixa ninguém indiferente. Selvagens e possuídos por uma força negra e desconhecida, atacaram os nossos tímpanos e proporcionaram um excelente final para uma inesquecível edição do Amplifest. Quem quisesse algo mais descontraído, tinha a opção de relaxar ao som dos ritmos africanos de Alhousseini Anivolla que, através do seu encantador blues touareg, trouxe o calor do Saara ao Main Floor do Hard Club.
E assim terminou mais um Amplifest. Para o ano esperamos mais uma edição como esta, com um cartaz cuidadosamente elaborado, feito por melómanos para melómanos!
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Organização:Amplificasom
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sábado, 20 dezembro 2014