Reportagem Amplifest 2016
Amplifest - 19/08/16 | Cave 45
2016 Foi um ano marcante para a Amplificasom: para além de alcançarem uma década de existência, conseguiram, após muito trabalho árduo, concretizar o sonho de trazer os lendários Neurosis a Portugal. Esse momento histórico teve lugar na sexta edição do Amplifest, que este ano, para além do Hard Club, se estendeu à Cave 45 e ao Passos Manuel para uma experiência prolongada – quatro dias dedicados à apreciação e descoberta de alguns dos mais ousados nomes da música alternativa actual, com ênfase nas sonoridades mais pesadas e emocionalmente densas.
Foi precisamente na Cave que a nossa aventura começou, ao som dos franceses Aluk Todolo. No palco encontrava-se uma lâmpada solitária, a única fonte de luz no meio de uma profunda camada de escuridão, criando desde logo o ambiente perfeito para a viagem sonora sufocante que se esperava. O que se seguiu foi precisamente uma caminhada em direcção a um mundo de obscura dissonância, onde uma intensa parede de som se formava na sala e provocava arrepios na pele. É essa atmosfera ritualista que torna cada actuação dos Aluk Todolo num momento de indescritível beleza, em algo que ansiamos voltar a testemunhar mal chega ao fim. Na verdade, podemos classificar os concertos dos Aluk Todolo com a mesma palavra usada para caracterizar o Amplifest: experiência. Quando tudo terminou, tínhamos visto ali algo incrível, ao nível – ou talvez até melhor – daquilo que tinham feito, há três anos, no Hard Club. Para quando a próxima visita?
Amplifest - 20/08/16 | Hard Club
Sábado representou, para muitos, o começo do Amplifest – afinal de contas, nem todos puderam ir à Cave 45 e ao Passos Manuel e grande parte da programação estava concentrada no Hard Club.
O dia iniciou-se, como já é habitual, com um documentário musical, neste caso a obra “Across the USA in 51 Days - The Movie!”, que retrata a odisseia no qual os Melvins embarcaram quando decidiram realizar 51 concertos em 51 dias consecutivos, percorrendo os 50 estados americanos (incluindo uma data extra em Washington DC). Infelizmente, este primeiro dia foi marcado, durante a tarde, por problemas técnicos que atrasaram não só a exibição do referido documentário, como também a actuação dos Minsk – um contratempo pelo qual a Amplificasom pediu desculpa (tanto através de avisos colocados nas paredes do Hard Club, como no Facebook, numa louvável demonstração de respeito pelo público) e que, felizmente, conseguiu ser resolvido. Além disso, por muito aborrecido que tenha sido o longo atraso, tivemos direito a uma actuação competente dos Minsk, que debitaram o seu post-metal/doom complexo e ambicioso, com recurso a diversas vocalizações, de forma eficaz. Falta agora um retorno, se possível em nome próprio, onde não haja obstáculos desta natureza.
Menos bem estiveram os bascos Altarage. Apesar da estreia “NIHL” ser uma monstruosa descarga de death metal obscuro que vagueia ocasionalmente pelo território do black metal e até do noise, ao vivo a banda mostrou necessitar de maior coesão, algo perfeitamente normal tendo em conta que se tratava da sua primeira apresentação, mas que inevitavelmente afectou o concerto. Ainda assim, têm intensidade e muito potencial, sendo somente uma questão de tempo até adquirirem mais experiência.
As apostas nacionais deste dia deram frutos. Se os Redemptus, ao início da tarde, proporcionaram um valente aquecimento através de uma sábia mistura de brutalidade e melodia, sempre envolta em escuridão, os Sinistro foram aquilo que melhor sabem ser – encantadores. Não desvalorizando a inegável qualidade de todos os músicos envolvidos, a verdade é que a presença de Patrícia Andrade é um ponto a favor – sobretudo ao vivo. Mais do que uma mera vocalista, usa a sua experiência como actriz para dar um toque teatral à actuação, parecendo em diversas alturas estar a representar e a contar-nos uma história. Um concerto muito bem dado, onde pudemos escutar pela primeira vez, ao vivo, a formidável “Cidade (parte 1) “.
No campo das revelações internacionais, temos Kowloon Walled City e Anna Von Hausswolff. Os primeiros protagonizaram uma das mais enérgicas actuações do dia, sendo também autores de uma refrescante mescla de post-hardcore, doom e noise rock. O som da banda revela-se vigoroso e algo irreverente, mas também carrega um forte sentimento de melancolia e angústia contida, originando emotivas explosões sónicas. Tudo isto constituiu uma extraordinária dose de adrenalina que nos deixou com força para enfrentar a maratona de concertos que ainda tínhamos pela frente.
Quanto a Anna, ofereceu-nos um belo e majestoso concerto, que certamente entrará para a lista de melhores não só do Amplifest, como do ano. Com um jogo de luzes que lhe escondia a cara e lhe conferia uma aura fantasmagórica, a artista sueca navegou por um mundo ora melódico e de sentimento eclesiástico, ora negro, violento e quase esquizofrénico. Se “Deathbed” soa como a banda sonora de um épico filme, já “Evocation” remete-nos para o terror de um exorcismo, como se ela própria estivesse a batalhar os demónios que lhe atormentam a alma. Contudo, mesmo nos momentos de maior ruído e agitação, Anna Von Hausswolff nunca perde aquela figura de menina dócil e apaixonada pelo que faz – até refere, com uma inocência contagiante, que só toca com os melhores amigos. No fim, depois desta poderosa exibição, o público estava rendido.
Dos Kayo Dot recebeu-se uma onda de ecletismo desenfreado, tal como se esperava. O grupo liderado pelo prolífico Toby Driver mergulhou profundamente na exploração de diferentes estilos, sem limites ou regras, assinando um concerto ousado e apreciado por aqueles preparados para tal aventura sonora.
Os Mono já há muito que são uma presença regular no nosso país; contudo, tal como reencontrar um velho amigo, gostamos de estar novamente com eles, muito por culpa da qualidade do post-rock harmonioso, aventureiro e de inspiração clássica que praticam. Escuta-los é uma experiência relaxante e até revigorante para a alma, sendo por isso que uma “Ashes in the Snow” nunca deixa de nos encantar. De certa forma, olhamos para o grupo nipónico com uma espécie de familiaridade celebrada, a certeza de que cada visita será sempre um momento para recordar. Aguardemos pelo próximo capítulo…
Amplifest - 21/08/16 | Hard Club
Neste terceiro dia de Amplifest- o último para alguns - o prato principal era a estreia, após muitos anos de espera, dos Neurosis. Todavia, antes disso, muito mais houve para ver, incluindo a fantástica surpresa que foram os israelitas Tiny Fingers. Munidos de uma poderosa amálgama de rock progressivo, paisagens psicadélicas e alguma electrónica pelo meio, fizeram-nos dançar e viajar por todos os recantos do espaço sideral. Na verdade, chega a ser inacreditável a maneira como em certos momentos, sobretudo quando os sintetizadores adquirem predominância, nos sentimos a ouvir a banda sonora de uma qualquer série sci-fi.
Nota positiva também para os Tesa. Apesar da sua marca de post-metal não ter como principal característica a originalidade, compensaram com a criação de uma admirável – e absolutamente esmagadora – parede de som, numa prestação intensa e bastante forte.
Dos The Black Heart Rebellion é sempre difícil falar, tendo em conta o eclectismo que os define. Autores de desafiantes discos como “Har Nevo” e o mais recente “People, when you see the smoke, do not think It is fields they're burning”, exploram diversos estados de espírito e agarram-nos com os imprevisíveis atalhos sonoros que tomam para chegar a diferentes mundos musicais, que incluem até passagens orientais. Há também uma forte presença de percussão, referências ao post-punk, ao folk negro e ao hardcore - no geral, um incansável processo de experimentação que, ainda que difícil de reproduzir em palco, constituiu uma interessante viagem sonora e até espiritual.
Depois de uma pausa crucial para recarregar energias, voltamos para ver os Caspian proporcionarem uma das mais encantadoras sessões de post-rock na história do Amplifest. Erguendo esculturas sonoras a partir de melodias poéticas e sonhadoras, apelaram à mais pura emoção humana, por vezes aproximando-se da catarse. Um concerto ideal para ser apreciado de olhos fechados, de forma a nos deixarmos levar pelos sons sublimes que ecoavam pela sala.
Em estreia absoluta no nosso país, os Hope Drone voltaram a instalar o caos com uma inteligente fórmula de post-black metal, fortalecida com elementos de doom. A sonoridade dos australianos vive de uma constante dualidade entre a agressividade arrasadora e a melodia contemplativa, sendo que aquilo que testemunhamos foi uma incontrolável explosão de raiva, com os presentes a sentirem na pele toda aquela angústia agonizante… uma actuação apoteótica.
Os belgas Oathbreaker, em vésperas de lançamento de “Rheia”, um álbum que parece continuar a levá-los por novos caminhos, mostraram que a chama permanece bem acesa. Tendo em Caro Tanghe uma vocalista poderosa e carismática – basicamente, a pessoa indicada para guiar este furação de hardcore tingindo de black metal niilista - assinaram um regresso memorável, onde se destaca a vigorosa interpretação de “Glimpse Of The Unseen”.
Os níveis de intensidade mantiveram-se elevados com a descarga de crust punk, sludge e post-rock dos Downfall of Gaia, que mais uma vez fizeram questão de nos lembrar o quão devastadores são em palco. Destaque ainda para o monstro que é Michael Kadnar na bateria.
A passagem de CHVE, projecto de Colin H. Van Eeckhout, dos Amenra, teve o azar de acontecer antes da chegada dos Neurosis, numa altura em que já se formavam longas filas para entrar na Sala 1 e ver a banda californiana. Noutra ocasião - e mesmo noutro local, como o Passos Manuel – o concerto teria tido mais impacto. Ainda assim, não deixou de ser uma aprazível viagem pela faceta mais calma – mas igualmente emotiva e transcendente – de um músico que habitualmente vemos num registo impetuoso.
Finalmente, o momento chegou: a espera - incluindo no próprio recinto, antes de entrarmos - parecia interminável. Mas o sonho subitamente tornou-se realidade: os Neurosis pisaram finalmente um palco português. Era palpável o entusiasmo no ar, sentia-se que estava ali a acontecer algo verdadeiramente histórico – neste caso, uma conquista colectiva: para a organização, que batalhou arduamente durante uma década para tornar este cenário possível; e para o público, que pode agora finalmente riscar os Neurosis da lista de bandas a ver.
Quanto ao concerto, foi simplesmente incrível. Apresentando uma química invejável, típica de veteranos com décadas de experiência, deixaram que a qualidade e a força surreal de temas como “Lost”, “Locust Star” (que arrancou uma reacção extremamente efusiva da plateia) ou “Stones from the Sky” falassem mais alto. Enquanto estiveram em palco, espalharam magia e conquistaram os nossos corações com a genialidade, imaginação e pujança das suas composições… e nada mais se pedia. Um momento eternamente gravado na memória de quem teve a honra de o presenciar.
Para os corajosos que ainda tinham energia e vontade para mais, Prurient – alter-ego de Dominick Fernow - atacou cruelmente os tímpanos de quem se atreveu a entrar na Sala 2 para absorver uma esquizofrénica mistura de electrónica, noise e black metal. O próprio homem parecia estar possuído, tal era o olhar penetrante que exibia e a maneira assustadora como dava berros de agonia, tudo isto antes de terminar numa onda mais dançável. Lindo, simplesmente magnífico!
Amplifest - 22/08/16 | Passos Manuel
Para ajudar a recuperar, emocional e fisicamente, da gigantesca maratona de concertos do fim-de-semana, a Amplificasom preparou uma despedida, que teve lugar no ambiente confortável e intimista do Passos Manuel.
A programação da última etapa da Extended Experience iniciou-se com The Leaving, projecto de Frederyk Rotter, dos suíços Zatokrev. O músico apresentou um folk delicado e relaxante, perfeito para ser escutado quando queremos estar sozinhos, afastados do ritmo caótico da rotina diária. O concerto acabou por ser o aquecimento perfeito para o que se seguia: o senhor Steve Von Till.
Depois de ter maravilhado o público na noite anterior com os Neurosis, o músico voltou para nos arrepiar com aura negra e contemplativa do seu trabalho a solo. Detentor de uma voz grave e possante, pega na sua guitarra para criar um folk terno mas solitário, numa espécie de doce melancolia sonora. Também se revelou bastante comunicativo, fazendo questão de desempenhar o papel de contador de histórias e nos elucidar acerca das músicas que ia tocando, tal como aconteceu com a história sobre Jack London antes da interpretação de “Valley of the Moon”. Nesse sentido, é curioso notar que Steve conseguiu recriar o mesmo ambiente que o colega de banda Scott Kelly nas suas apresentações a solo, nesta mesma sala: ambos proporcionaram uma atmosfera calma e intimista, de pura apreciação musical.
Mas não só de material original se fez este concerto, havendo também espaço para uma belíssima cover do clássico “Black Crow Blues”, do génio (palavras de Steve Von Till) Townes Van Zandt.
Depois desta comovente prestação, resta-nos dar os parabéns à Amplificasom pela realização de um evento que nos permite assistir a concertos fantásticos e guardar memórias inesquecíveis. Trata-se realmente de algo único em Portugal, razão pela qual esperamos que tenha um futuro saudável. Até para o ano!
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Organização:Amplificasom
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segunda-feira, 25 novembro 2024