Reportagem Festival Amplifest 2011
Finalmente, o primeiro grande cartaz da promotora que já dava sinais de se querer aventurar em mais altos voos. A Amplificasom pode gabar-se de nos últimos cinco anos ter feito passar por Portugal vários nomes de peso, muitos dos quais arrumaríamos na gaveta do "melhor ver as viagens low cost, nunca vamos ter estes gajos por cá". Pelican, Boris, Secret Chiefs 3, Silver Mount Zion, These Arms Are Snakes, Earth, Wolves In The Throne Room, Kayo Dot, Isis... só de cabeça.
Eclético, dirão uns. Esquisito, dirão bastantes. Óbvio, para os que se fazem à estrada com uma playlist que salta de Wagner para a música das Tartarugas Ninja, ou de Khanate para 16 Horsepower, seja A1 acima ou A3 abaixo. Segurança rodoviária acima de tudo, mas interessa é chegar ao Porto.
Sábado, 29 de Outubro:
E que melhor caldeirão para misturar tudo isto que o Mercado Ferreira Borges, agora trajado de Hard Club, a contemplar aquela nesga de Douro por entre a Praça da Ribeira. Suzuki Junzo leva-nos num dos primeiros barcos para Tóquio que partirão ao longo do Amplifest. Blues navegante, com acessos de raiva que fariam lembrar o Keiji Haino, não estivesse ele sentado a espernear na cadeira. Outros amigos de Suzuki (este dos Can), os Cuzo, de Barcelona, prolongam o psicadelismo, deslizando entre o riff e o improviso. Alguns toques experimentais que roçaram um pouco o jeanmicheljarrismo, mas a não demoverem os cerca de 500 pescoços que já se começavam a desengonçar pelas salas. "Puedo ver tu mente" será mais um álbum a descobrir em casa.
De volta ao Palco 1, os holandeses Sungrazer chegam como dignos representantes da escola Elektrohasch (Colour Haze, Causa Sui, stoner caseirinho). Num cartaz onde a parte instrumental domina claramente o airplay foi uma surpresa assistir aos refrões mais grungy do festival, pelo meio de jams e guitarradas à Fu Manchu. De regresso a terrenos mais hostis, já desbravados ao início do dia pelos E.A.K., única banda portuguesa de hoje, encontramos os suíços Rorcal, que se descrevem como "black metal / down tempo". Mais uma daquelas bandas pesadonas e indecifráveis, boa para se ouvir enquanto se desvitaliza um dente.
Outro exemplo do carrossel sonoro que poderíamos esperar deste fim-de-semana chegou de Liverpool, com os Mugstar. Desvelando-se em todo o seu tropicosmicismo kraut, não escondem a herança dos Neu! ou mesmo dos Pink Floyd, mas já com um pé no virar do século (Sonic Youth, Oneida, e mesmo um split com Mudhoney). "Today Is The Wrong Shape" era o disco de referência, mas iremos sem dúvida averiguar os novos "Sun Broken" e "Lime". Alguém disse "hardcore"? Transição mais evidente... Da editora Deathwish, os Rise and Fall (os nomes não enganam mesmo nada) chegam como os primos europeus dos Converge. O álbum novo, a sair em inícios de 2012, talvez mostre que serão um pouco mais do que isso. Até lá, fica a ideia de um bom concerto para os wildcards da noite.
Correcção. Nada diz melhor "fora do baralho" como os OvO. Num misto de Carnaval de Veneza com exibição de wrestling mexicano, a dupla Stefania Pedretti e Bruno Dorella dá um dos concertos mais revigorantes de sábado. Dorella, de pé, desanca dois tambores e um prato, como um urso enlouquecido, enquanto Stefania se entrega a devaneios líricos entre o avantgarde e o j-rock, tudo ateado por linhas distorcidas ora de baixo ora de guitarra. Nota mental: tentar tocar baixo com um esquadro a servir de palheta.
Os Jesu de Justin Broadrick provaram que nem só de cabeças de cartaz vive um festival. Partindo do novo "Ascension", passando por temas como "Conqueror" e "Friends are Evil" da fase inicial, Broadrick, mesmo que prejudicado por alguns problemas de som, não conseguiu disfarçar um certo anacronismo de que todos os géneros musicais com o prefixo "pós" acabam por sofrer. Valeu o breakcore de Drumcorps a salvar um final que não seria dos mais alegres. Calma que domingo também é dia.
Domingo, 30 de Outubro:
E não seria de descanso. Perdido o concerto de L'Enfance Rouge, por causa de um acidente doméstico a jogar Guitar Hero (mas perguntem a quem os viu em Lisboa, no sábado), chegamos mesmo a tempo de ver Enablers, precisamente a primeira banda que a Amplificasom trouxe ao Porto, nos idos de 2006. Não terá mudado assim tanto nestes cinco anos, o som do quarteto de S. Francisco, que, apesar da tendência mais progressiva de "Blown Realms & Stalled Explosions", continua a distinguir-se pelas palavras de Pete Simonelli, atiradas como pedras a um mar de guitarras à Slint. Para recordar, e também a dar o mote para o que ainda estava para vir.
Os/as Witchburn estariam algo deslocados neste segundo dia mais solene. St. Vitus, dizia o amigo do lado. Doro, teimava outro. A guitarrista é gira, nisso todos concordavam. Entretanto, um dos nomes mais aguardados do festival já tocava no Palco 1. Os Bardo Pond não precisam de grandes apresentações. Vinte anos de carreira, oito álbuns de estúdio e dois irmãos que mantêm viva a estrela do space rock carburada de drogas várias, talvez já sem o calor de outros tempos. O álbum homónimo de 2010 foi recebido sem grande entusiasmo, mas não deixa de ser verdade que ganha outra forma ao vivo, com a desarmonia das flautas e os feedbacks que se espalham como enxames pela sala. Não faltaria também a viagem aos tempos de teenagers, com temas como "Limerick" e "Tommy Gun Angel".
Pelo meio, tocaram os parisienses Dirge e os eborenses Process of Guilt, ambos no campeonato do post-metal que, pela quantidade de adeptos que continua a granjear, leva a pensar que ainda há muito a espremer do espólio dos Neurosis. O verdadeiro monólito estaria na simplicidade dos Barn Owl. São momentos como este que nos fazem sentir como se estivéssemos num Roadburn em miniatura, não tendo sido poucos os que compararam o Amplifest com o festival holandês. O tempo nunca chega para tudo, e na porta ao lado pode estar a experiência intensa de que estávamos à espera, em que entramos na sala a meio, com todos já sentados no chão ou nas cadeiras, emudecidos, hipnotizados, em que amaldiçoamos o mundo por não haver uma coffee shop ali ao lado, em que nem a máquina fotográfica que andou sempre de um lado para o outro a atirar flashes à cara do público nos conseguiria irritar a sério. Os Barn Owl são um duelo suave de cordas, no high noon do deserto californiano, do drone ao raga, com tudo de bom que se pode esperar de duas guitarras e uma boa dose de delay.
Já nada pode correr mal quando o barco faz a última passagem por águas japonesas. Um concerto de Acid Mothers Temple é sempre previsível e imprevisível ao mesmo tempo. No primeiro caso, porque é sinónimo de satisfação pura, tal é a entrega da banda. No segundo, porque esta pode variar ao sabor das flutuações de line-up, ou das colaborações com outros artistas. Ainda assim, "Pink Lady Lemonade" continua a ser a trip suprema, condensada em 24 minutos, com mais ou menos açúcar para cortar o ácido. Impossível ver os Orthodox, por mais boa vontade que houvesse.
É preciso respirar fundo, muito fundo, antes de Godflesh, esses sim, a dispensarem qualquer apresentação.
Toda a gente terá ouvido o "Streetcleaner" pelo menos uma vez no seu passado metaleiro, ou um álbum influenciado por ele, ou tido um primo de Corroios que tinha o disco. Senão, deviam. E é mesmo pelo início que começam Green e Broadrick: "Like Rats", "Christbait Rising", "Tiny Tears" e "Mighty Trust Krusher", intercaladas pela faixa título do álbum seminal lançado em 1989, quando a maioria do público presente ainda não seria mais do que um brilho nos olhos dos paizinhos a seguir àquele copo de vinho. Broadrick sabe o que queremos ouvir: a drum machine demolidora, o ronco da guitarra, a voz do arauto da desgraça. Screw you and your world, é a frase que fica a ecoar após "Avalanche Master Song", num revisitar dos primórdios da banda, quando perceberam que havia mais na vida do que grindcore.
É o fim do mundo, mas em dançável. Regresso a "Streetcleaner", com "Life Is Easy" e "Dead Head", com paragem definitiva nos anos 90, revisitando "Spite", "Mothra" e "Pure" (do álbum do mesmo nome), e o encore com "Crush My Soul" e "Slateman".
O Amplifest é uma prova de resistência e é impossível falar de tudo. A sua experiência ultrapassa a música, e por isso queremos estar em todo o lado ao mesmo tempo.
Esgotado desta ubiquidade, deito-me agora no sofá de casa, depois de outro concerto de rock psicadélico num pavilhão qualquer, e revejo os grandes nomes do fim-de-semana.
Ponho o álbum de Barn Owl a tocar, enrolo a erva que esqueci sobre a secretária, na pressa de sair, e sinto-me um hippie desenraizado, depois de andar 30 anos a seguir os Grateful Dead, aceitando que o mundo muda, mas na certeza de que fica igual. Penso nos amigos que fiz, e em que concertos terão eles delirado.
Para o ano há mais, esperamos. Os mouros agradecem de bom grado.