Reportagem Festival Ecos do Sado 2011
O Festival Ecos do Sado teve no passado fim de semana a sua segunda edição, dois anos após a edição de estreia.
O evento espalhou-se pelo que se pode considerar que sejam as três principais salas de concertos do underground setubalense neste momento. A Ecos tem sido uma das principais forças de organização de concertos em Setúbal, liderada pelo incansável João Miguel Fernandes, responsável também pelo recém estreado documentário "Setúbal Tem Alma Musical". Numa altura em que a afluência aos concertos na cidade tem ficado um pouco aquém da ambição, o momento de abertura deste festival passou o teste: Os Surveillance, duo composto por Tiago Martins (ex-Porn Sheep Hospital, Ella Palmer) e Inês Lobo, contaram com uma casa bem composta no bar ADN. O que se ouviu durante os 20 minutos do concerto foi um rock experimental maioritariamente conduzido pelo baixo – naturalmente simples e directo, apesar das referências noise e math. O verdadeiro descolar do concerto esteve no último tema, com o convidado Gonçalo Duarte dos Lydia's Sleep a acrescentar uma muito bem vinda camada de ruído de guitarra.
Aos Gato Por Lebre e aos Common Fluid, relativamente desconhecidos por estas bandas, coube a ingrata tarefa de evitar a debandada de um público desinteressado, lutando contra os problemas técnicos que foram surgindo. Os primeiros conseguiram entreter uma pequena parte do público com o seu indie-rock-tradicional-português (ver Diabo Na Cruz, Os Pontos Negros), ao passo que os segundos debitaram um rock alternativo à moda de Seattle.
Por último, e para uma plateia mais reduzida do que aquela que iniciou a noite, estiveram os Lydia's Sleep, uma banda que sofreu algumas metamorfoses ao longo do último ano. Os intercâmbios saudáveis com os portuenses Equations e os lisboetas I Had Plans trouxeram os setubalenses para longe do pós-rock melancólico da sua encarnação anterior, e para as praias do pós-hardcore e math-rock. Não é de admirar portanto que o reportório até agora conhecido, que os consagrou vencedores de ambos os prémios do Concurso de Bandas de Setúbal no princípio deste ano, tenha ficado de lado para este concerto.
Embora a duração do concerto tenha sido curta, por culpa de alguns atrasos, os rapazes mostraram que os novos temas estão sérios e vão dar que falar quando forem gravados.
Nota: A ausência da crítica ao concerto de Ella Palmer deve-se ao facto de o repórter ser elemento da banda.
A abrir as hostes do segundo dia, na Capricho Setubalense, estiveram os Wind Koala. Esta é uma das novidades no panorama setubalense, composta por membros dos defuntos Red Smoking Indians. Num concerto de apenas 15 minutos, os jovens apresentaram três temas de um indie pop barulhento e acelerado, actual e fresco, repleto de sintetizadores e ritmos dançáveis. Os Wind Koala tiveram a sua estreia ao vivo apenas uma semana antes deste concerto e contam com apenas 3 meses de existência, pelo que o caminho até agora se avizinha promissor.
Para os Deception Point, também de fora de Setúbal, temia-se uma debandada semelhante à do dia anterior, mas conseguiram combater a predisposição do público para a apatia. Apesar de alguns problemas com o som, entregaram de forma bastante sólida o seu rock duro com toques de prog.
Os Blame The Skies são uma das principais novas esperanças da cidade de Setúbal, e também os sucessores mais directos da escola dos More Than a Thousand e Hills Have Eyes. O que os destaca destes dois colossos do peso nacional são as guitarras virtuosas e um jogo de vozes mais elaborado – há duas variedades bastante distintas de grito e ainda os refrões melódicos do baterista Diogo Miguel a fazer lembrar Aaron Gillespie dos Underoath. Este é um dos pontos em que os Blame The Skies se destacam de outras bandas do género: a distribuição do trabalho vocal por três vocalistas (dois deles dedicados) faz com que nunca percam o fôlego. Os temas do EP "Home For Courage", produzido por Vasco Ramos (More Than A Thousand), podem ainda não ter uma diversidade à altura das capacidades da banda, mas as novas músicas apresentadas alargam o espectro estilístico dos Blame The Skies para extremos mais pesados e também mais leves. Haja dinheiro para gravar álbum.
Seguem-se os Moe's Implosion do Montijo, à beira do lançamento do primeiro álbum de originais, "Light Pollution" (a ser editado pela Raging Planet ainda este ano). Ao funk-metal de antigamente, os Moe's Implosion apuraram as sensibilidades melódicas e juntaram uma injecção de prog espacial, como o que se ouve na abertura do concerto com "Space Fado", mas também de riffs mais pesados a roçar o nu-metal (é bom ver que ainda existe quem apoie a causa). Num concerto que consistiu principalmente em músicas do álbum de estreia, ainda houve tempo para relembrar "Fat Phony Chicks" do EP Morning Wood, seguida de uma versão de "Feel Good Hit Of The Summer" dos Queens of the Stone Age. A energia em palco continua explosiva como sempre, e a interpretação das músicas foi a de uma banda muito coesa e segura. A fechar esteve o novo single "Tip Of The Tongue", com uma força superior à da gravação.
O último dia da segunda edição do Festival Ecos do Sado realizou-se à tarde no salão nobre do Club Setubalense e foi a derradeira surpresa do fim de semana, com uma casa muito bem composta. No início da tarde tocou Diogo Marrafa, um jovem habitué dos concertos da cidade por mão de várias bandas rock, mas desta vez em nome próprio. Apesar de alguma insegurança inicial terá conseguido estabelecer a empatia necessária com a sala para dar vida às canções acústicas que até agora eram um talento desconhecido do rapaz.
Por alteração de horários, Azevedo Silva, um dos dois nomes grandes do dia, actuou em segundo lugar, acompanhado de outro guitarrista e uma violinista. Directamente da linha de Sintra, a sua postura relaxada de comediante stand-up contrastou com o desfile de canções urbano-depressivas. O alinhamento, composto por temas fortíssimos dos três albuns a solo, não deixa margem para dúvidas: este é um artista cuja (injusta) ausência de apelo mainstream se deve apenas à negritude das canções. Como ele próprio comenta ao olhar para a setlist, o único título que evoca alguma pálida sugestão de alegria é "carrossel". Nem todas as pessoas que se deslocaram ao Club Setubalense nesta tarde de domingo esperavam ouvir refrões amargos como "sabe a pouco o que a vida nos reservou", de "A Morte", mas poucos terão ficado indiferentes. Os ânimos subiram com "Manel Cruz e a Canção da Canção Triste", perto do final, muito por culpa dos ritmos digitais acrescentados. Talvez seja esse o segredo para o eventual sucesso comercial do cantautor – uma secção rítmica para disfarçar um bocadinho a tristeza.
Em seguida actuaram os Kalafate, um projecto jovem de Setúbal que estava inicialmente programado para dar início ao espectáculo. Os temas envolviam experiências entre o blues e a música tradicional portuguesa, com uma interpretação simples e nem sempre certa. No final, o concerto incluiu ainda uma colaboração com o Charroco da Profundura (uma espécie de Zé Povinho de Setúbal, sustentado pelo Facebook), com gravações vocais que acompanhavam um instrumental da banda. Sendo um projecto tão verde, o concerto pecou pelo enquadramento entre dois artistas de nível – talvez a abrir o dia pudessem ter sido uma surpresa mais agradável.
Por fim, aquela que foi provavelmente a jóia da coroa do Festival Ecos do Sado, Rui Carvalho, também conhecido por Filho da Mãe. O guitarrista dos If Lucy Fell que em nome próprio se faz acompanhar apenas por uma guitarra clássica é neste momento um dos maiores virtuosos do país. Como é que um concerto em que a única voz é uma guitarra clássica é suficiente para prender a atenção de um salão nobre repleto de jovens e velhos nos dias que correm? Com um álbum verdadeiramente genial como é o "Palácio" (Rastilho, 2011), recheado de músicas épicas, que cruzam o clássico com o novo. No final do concerto, após um aplauso que parecia nunca mais acabar, o Filho da Mãe disse não ter mais músicas para tocar, e ameaçou "vocês não sabem onde é que se meteram", antes de se lançar num improviso noise carregado de loops e reverberação, para trazer o punk de volta à guitarra.
O aplauso voltou e o festival terminou em beleza, marcando pontos pelo ecleticismo que foi, em boa parte, recebido de braços abertos pelo público.
É de altos e baixos que se fazem as experiências culturais para remar contra a crise neste sector.
Fica a organização de parabéns, Setúbal vive.