Reportagem Festival Marés Vivas 2014
Indo já na décima segunda edição, o primeiro dia do Festival Marés Vivas 2014 deu primazia à eletrónica, a sons criados com o intuito de pôr toda a gente a saltar e a dançar freneticamente.
No palco secundário, o final de tarde na praia do Cabedelo iniciou-se ao som do rock musculado dos The Lazy Faithful, terminando com a actuação dos lisboetas Capitão Fausto – nome emergente no actual panorama da música nacional. Muito se tem dito e escrito sobre estes rapazes, sobretudo acerca do mais recente disco de originais “ Pesar o Sol”, e a verdade é que esse hype (à falta de melhor termo) acaba por se justificar. A pop serena e contemplativa do quinteto, onde os ambientes psicadélicos dos Beatles ou dos Pink Floyd da era Syd Barrett coexistem com a atmosfera progressiva de uns Gentle Giant, é tranquilizante e sonhadora. Adoptando ocasionalmente um carácter experimental e mantendo conscientemente uma atmosfera inocente, soa, por vezes, a uma espécie de banda sonora da infância. Apesar de terem capacidade para fazer (ainda) melhor, os Capitão Fausto merecem a atenção que lhes tem sido dada, tendo oferecido um concerto competente e bastante agradável. Destaque também para o profissionalismo do vocalista e guitarrista Tomás Wallenstein, que actuou com o braço direito engessado.
No palco MEO (o principal), os Skindred tocaram pela primeira vez em Portugal. Contudo, a ex-banda do vocalista Benji Webbe (os Dub War) inaugurou o palco do antigo Hard Club – uma emblemática sala de concertos actualmente abandonada e em ruínas. Dezassete anos depois, o regresso do vocalista à mesma cidade fez-se com um projecto diferente para um público mais generalista. No entanto, um frontman carismático e irrequieto como Webbe torna-se facilmente o centro das atenções, pois o homem é completamente hiperactivo: canta, salta e motiva a multidão, para que esta desperte e se entregue de corpo e alma à música. No final, a perseverança de Benji deu frutos, mas a própria sonoridade dos Skindred – uma mistura de metal, punk, hip hop, eletrónica e reggae – revelou-se ideal para um festival ao ar livre, fazendo com que a passagem do quarteto pelo Marés Vivas fosse um sucesso.
Seguiram-se os Modestep, que mantiveram os níveis de energia bem elevados. A banda londrina mistura dubstep (ou brostep, a versão mais agressiva do estilo), drum 'n' bass e rock, recordando os Enter Shikari. No entanto, o segredo para as suas actuações explosivas não reside apenas na qualidade das composições: a performance do frontman Josh Friend – um verdadeiro animal de palco – tem igualmente um efeito contagiante. Para além disso, as remisturas de diversos clássicos do passado, como “Smells Like Teen Spirit” dos Nirvana, “Killing in the Name” dos Rage Against the Machine ou “Cowboys from Hell” dos Pantera (para além de “Hangover”, hit dos Buraka Som Sistema) fizeram as delícias do público presente. Uma prestação cheia de garra por parte de uma banda que, apesar de não inovar, demonstra um grande potencial.
Quanto ao Xutos & Pontapés, estavam completamente desenquadrados do resto do cartaz, mas exibiram um profissionalismo exemplar, interpretando os clássicos do costume, entre os quais “Maria”, “Homem do Leme”, “A Minha Casinha” e “Não Sou o Único”. Para alguns, os Xutos não passam de uma banda nacional que vai a todos os grandes festivais de Verão, mas, para outros, assistir a um concerto deles é como reencontrar um velho amigo, daqueles com quem se sai para recordar velhas histórias e beber um copo. Os últimos, fãs da banda, ficaram satisfeitos com o que viram; os restantes descansaram um pouco e recarregaram as energias.
A encerrar a noite, os The Prodigy regressaram a Portugal e ao próprio Marés Vivas, onde já tinham estado em 2008. O início com “Breathe” tornou claro que a banda de Liam Howlett já há muito que atingiu o estatuto de lendas, não necessitando de um setlist cuidadosamente elaborado, já que qualquer música é suficiente para criar um clima de pura festa e diversão. Essa atmosfera é precisamente o que torna os britânicos num grupo tão admirado: funcionam como um escape à realidade, uma oportunidade de esquecer os nossos problemas e mergulhar num mundo descontraído e selvagem. Enquanto estiveram em palco, transformaram o recinto numa autêntica rave, com toda a gente a dançar como se não houvesse amanhã. Temas mais antigos como “Voodoo People”, “ Poison”, “Firestarter” ou “Smack My Bitch Up” misturaram-se harmoniosamente com composições mais recentes como “Omen”, “Invaders Must Die” ou “Take Me to the Hospital”. Na despedida, ouviu-se “Their Law” do segundo álbum de originais “Music for the Jilted Generation”, fechando com chave de ouro um concerto triunfante.
2º dia - 18 de Julho
Em dia diluviano, o Marés Vivas acolheu o regresso dos James e Skrillex. Contudo, apesar do alinhamento apelativo, o tempo invernoso prejudicou significativamente o evento. Ainda assim, as condições climáticas desfavoráveis não desmotivaram a multidão que praticamente encheu o recinto, embora nem todos tenham aguentado até ao fim.
No que diz respeito à música, a oferta no palco principal começou com os Clã. A banda de Manuela Azevedo baseou o seu setlist em temas recentes e nos clássicos que marcaram a carreira do grupo, como “O Sopro do Coração” ou “Dançar na Corda Bamba”. Contaram ainda com a participação especial da fadista Ana Moura, que subiu ao palco para uma interpretação conjunta de “Curto Circuito” e “Até ao Verão”, num curioso e cativante cruzamento de dois estilos musicais completamente díspares.
Seguiu-se James Arthur, o vencedor da nona temporada do The X Factor. Exibindo um visual algo rebelde – óculos escuros, boné ao contrário e diversas tatuagens – o músico britânico apresentou uma pop recheada de soul e R&B, numa actuação que conquistou os corações de muitas fãs devotadas, mas que dificilmente ficará na memória para os restantes, embora tenha sido competente.
Após a estreia no mesmo festival em 2008, os James regressaram ao Marés Vivas. Por esta altura, a banda de Manchester, com mais de três décadas de existência, já não tem nada a provar, tendo atravessado altos e baixos e sobrevivido para contar a história. Essa experiência e sabedoria reflecte-se na postura de Tim Booth e companhia, mostrando estar confiantes naquilo que fazem e cientes do legado que possuem. Apesar de a chuva não proporcionar uma atmosfera agradável, os James não arredaram pé, tendo feito tudo para que os fãs fossem para casa satisfeitos. Aliás, como forma de demonstrar gratidão, a passagem do colectivo serviu de cenário para a gravação do videoclip do single “Curse Curse”.
De resto, hinos como “Getting Away With It (All Messed Up)”, “Sometimes”, “Laid”, “Tomorrow” ou “Sit Down” foram, como já se esperava, os momentos altos de uma poderosa prestação.
Quanto a Skrillex, não deixa de ser lamentável a má sorte deste artista de Los Angeles: se não fosse o violento temporal, o impressionante espectáculo (sobretudo de luz) do DJ norte-americano teria sido testemunhado por muitos mais festivaleiros. Apesar deste contratempo, os mais resistentes foram devidamente recompensados. Em palco, havia um plano de fundo com a imagem de um alien (o mesmo que ilustra a capa de “Recess”) e uma imponente nave espacial. Podemos afirmar, num registo metafórico, que Skrillex levou a audiência numa viagem de quase duas horas pelo mundo do dubstep. E que viagem foi… só faltou um maior número de passageiros.
3º dia - 19 de Julho
“ Mas tudo tem um fim. E o fim chegou”.
Adolfo Luxúria Canibal (dos Mão Morta) canta este verso em “Tiago Capitão” e, efectivamente, o fim-de-semana do Marés Vivas estava quase a acabar, o que nos fez pensar em tudo o que vimos e sentimos ao longo de três dias: desde a energia dos The Prodigy ou Modestep, passando pela aula de aeróbica dada pelos Skindred, não esquecendo a emoção de alguns membros do público quando James Arthur interpretou o êxito “Impossible”. Por outras palavras, este evento foi uma autêntica aventura.
Na recta final, o Marés Vivas deu protagonismo a bandas lideradas pelo sexo feminino, apesar de não se limitar a esta temática. No entanto, antes de falarmos nas atracções principais, há que destacar alguns dos artistas menos conhecidos. Artistas como os The Black Mamba, por exemplo.
A receita musical do grupo inclui diversos ingredientes: blues, soul, funk e rock – uma verdadeira panóplia de sons que originou uma prestação formidável, merecedora do palco principal.
Foi precisamente esse palco que acolheu os We Trust. O grupo foi recebido com alguma indiferença, o que resultou num começo bastante morno. Contudo, o vocalista André Tentúgal revelou-se um frontman incansável e tentou, ao máximo, acordar a plateia adormecida – uma iniciativa bem sucedida. Quando chegou o momento da despedida, com a obrigatória “Time (Better Not Stop)”, o músico e a sua mini-orquestra já tinham o público na palma da mão.
Quanto aos The Gift, independentemente da opinião que se tenha em relação ao som que praticam, ao vivo as composições parecem ganhar uma nova dimensão, em parte devido ao registo apaixonado e envolvente da vocalista Sónia Tavares. Há aqui uma forte componente teatral, uma vontade de usar a música como uma plataforma para atingir total liberdade criativa; por outras palavras, quando sobe ao palco, Sónia é quem deseja ser.
Num concerto inspirado, destacamos as interpretações de “Fácil de Entender” ou “Ok! Do you Want Something Simple?”.
E o que dizer dos Portishead? Contrariando a tendência habitual em festivais, o grupo de Bristol trouxe uma aura intimista à praia do Cabedelo, criando uma atmosfera melancólica mas delicada, onde a melodiosa voz de Beth Gibbons guiou os presentes numa viagem psicadélica por mundos sombrios mas serenos, estranhos mas familiares. Apesar deste tipo de sonoridade (o trip hop) ser mais indicada para recintos fechados, os autores de “Dummy” conseguiram ultrapassar essa barreira, protagonizando um dos melhores concertos do festival (se não mesmo o melhor). O setlist percorreu todo o percurso da banda, mas o seminal álbum de estreia -que este ano celebra o vigésimo aniversário – esteve em destaque, através de temas como “Mysterons”, “Sour Times”, “Wandering Star”, “Roads” ou “Glory Box”. Um concerto magnífico por parte de uma banda verdadeiramente especial.
Com a chegada de Joss Stone, os tons emotivos dos Portishead deram lugar a uma soul efusiva e descontraída. A bela cantora britânica contagiou o público com a sua voz poderosa e uma simpatia exemplar. Descalça, de vestido preto e exibindo um sorriso adorável, Stone proporcionou a descontracção necessária a uma multidão que ainda se encontrava a ressacar da intensidade emocional do espectáculo anterior. Nesse sentido, a opção por colocá-la no final, de modo a encerrar o programa, foi bastante inteligente. Entre temas originais (“You Had Me” ou “Right to Be Wrong “) e algumas covers, como “(For God's Sake) Give More Power to the People”, Joss encantou, sendo que a banda que a acompanha também mostrou ser bastante talentosa.
Assim terminou o Marés Vivas… para o ano há mais, com datas já marcadas para 16,17 e 18 de Julho de 2015.
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sábado, 20 dezembro 2014