Reportagem Milhões de Festa 2015
O Milhões de Festa é, sem dúvida, um evento único no nosso país. Todos os anos, a bela e pacata cidade de Barcelos torna-se num aprazível espaço de descoberta musical, convívio e diversão. Ir ao Milhões de Festa significa entrar em contacto com bandas que não conhecemos e sairmos do recinto com vontade de as escutar em casa; significa mergulharmos na mais famosa piscina dos festivais de Verão e deliciarmo-nos com um refresco; ou então ir ao Palco Taina e saciarmos o nosso apetite com a oferta gastronómica, ao mesmo tempo que apreciamos um pouco de música.
Foi precisamente no Taina que o festival começou, no dia 0, onde se destacaram as actuações de nomes como os Happy Meals ou os habituais Riding Pânico.
No dia 1, quem se deslocou à piscina, onde estava o palco Ginga Beat com curadoria assegurada pela Red Bull Music Academy Radio, certamente que se divertiu ao som de Matias Aguayo, entre outros. O Palco Taina, ao final da tarde, recebeu os grinders Hemdale (mais a sua nudez, pois um dos elementos da banda despiu-se para combater o calor) e uma agradável actuação dos portuenses Hitchpop, que cruzaram a linguagem do jazz com pitadas de rock.
Os concertos no Palco Milhões começaram ao som dos italianos Al Doum & The Faryds, que proporcionaram o aquecimento perfeito através de uma envolvente mistura de world music com influências psicadélicas. Seguiram-se, no Palco Vodafone FM, os californianos Tijuana Panthers, que apresentaram a sua receita de garage rock com sabor a verão, ao qual se junta uma deliciosa sensibilidade pop. Composições como “Cherry Street”,“NOBO” ou “Creature” remeteram-nos para um ambiente de praia, sol e felicidade, causando imediatamente uma boa impressão.
O Milhões é famoso por dar a conhecer bandas que, mais tarde, atingem considerável sucesso no nosso país, chegando a um público mais vasto. Os All We Are, formados em Liverpool mas com elementos de diversas origens geográficas, têm tudo para conquistar esse estatuto em Portugal. Com apenas um disco de originais, homónimo e editado este ano pela Domino Records, são autores de uma pop serena, orelhuda e simplesmente irresistível. Temas como “Keep Me Alive”, “Feel Safe” ou“Utmost Good” despertam logo a vontade de dançar e cantarolar. Numa actuação bastante competente e com bom ambiente, ainda tivemos direito a uma cover de “Can’t Do Without You ”de Caribou.
Os escoceses The Cosmic Dead foram responsáveis por um dos melhores concertos de todo o festival. Recriando a magia do krautrock e o legado dos Pink Floyd da era Syd Barrett, conduziram-nos numa viagem psicadélica verdadeiramente selvagem e endiabrada.
Quanto às THEESatisfaction , apesar de terem sido confrontadas com problemas técnicos (falha no PC) no final da actuação, Stasia Irons e Catherine Harris-White souberam improvisar e , ao longo do tempo que permaneceram em palco, ofereceram ao público um concerto divertido e empolgante, onde o hip-hop, o R&B e a soul coexistiram e deram origem a uma linguagem musical que honrou as tradições afro-americanas.
Já novamente no Palco Vodafone FM, os HHY & The Macumbas envolveram Barcelos na atmosfera misteriosa, surreal e ocasionalmente fantasmagórica que caracteriza as actuações do excêntrico ensemble liderado por Jonathan Saldanha, provando que são um dos projectos mais arrojados e inovadores do nosso país.
Os Deerhoof são uma banda pouco consensual, devido à bizarra amálgama de pop e noise que praticam. Todavia, mostraram estar em grande forma, apesar de o baterista Greg Saunier ter admitido que se encontravam nervosos, já que numa anterior passagem do quarteto por Portugal, estavam somente 43 pessoas. Verdade seja dita, calmos ou não, a sonoridade que têm vindo a aperfeiçoar ao longo das últimas duas décadas foi sempre bastante imprevisível - há uma leve e subtil presença de melodia, mas o que mais sobressai é um colossal muro de distorção. Nesta estreia no Milhões de Festa, temas do mais recente “La Isla Bonita”, como“Last Fad” ou “Paradise Girls”, foram intercalados com outros mais antigos, como“Fresh Born”.
Antes do começo do after hours, onde o nome mais sonante era o do britânico PERC, os Golden Teacher, vindos de Glasgow, puseram toda a gente a dançar através de uma alucinante combinação de electrónica, disco e afrobeat, tendo sido uma das grandes surpresas do festival.
O segundo dia do Milhões de Festa começou com uma má notícia: Islam Chipsy, músico egípcio que prometia assinar um dos espectáculos mais enérgicos de todo o festival, cancelou a sua presença.
Contudo, a animação não parou. Durante a tarde, o ambiente alegre da piscina continuou em alta, sobretudo com os ritmos festivos e possantes do projecto argentino Chancha Via Circuito. No Palco Taina, os Go!Zilla revelaram-se uma excelente surpresa para quem se identifica com garage rock cheio de garra e atitude.
Já no palco principal, foram poucas as pessoas que assistiram ao concerto dos Grumbling Fur, banda que, para além de Alexander Tucker, inclui Daniel O'Sullivan, que já colaborou com os Sunn O))), Ulver,Æthenor, entre muitos outros. Criando uma pop bastante experimental, deram um concerto interessante que talvez tivesse resultado melhor num recinto fechado.
Se os The Cosmic Dead já tinham surpreendido com a sua dose de psicadelismo irrepreensível, os Anthroprophh, banda de Paul Allen, dos míticos The Heads, conseguiram, num feito verdadeiramente notável, manter a chama psicadélica bem acesa. Um concerto violento e pujante, que nos fez viajar pelas mais surreais terras da imaginação.
Igualmente numa onda psicadélica, mas bastante mais doce e melódica, os chilenos The Holydrug Couple permitiram-nos descansar um pouco e recuperar as energias, aguçando-nos a curiosidade para um concerto em nome próprio.
Os Drunk In Hell são, possivelmente, a banda mais pesada que já passou pelo Milhões de Festa. Autores de um sludge animalesco e arrastado, adicionam o toque experimental de um saxofone esquizofrénico, criando um som forte, tornado ainda mais intenso pela voz cavernosa de Stephen Bishop, que, mais tarde, actuou com o seu projecto de electrónica - Basic House.
Por fim, chegou a lenda. Michael Rother, membro dos Neu!, Harmonia e dono de uma invejável carreira a solo, chegou a Barcelos para nos levar à Alemanha da era krautrock, acompanhado de esplêndidas projecções que serviam de suporte visual à beleza musical que deliciava os nossos ouvidos. A certa altura, o músico prestou tributo ao ex-companheiro nos Harmonia - Dieter Moebius- que falecera na semana anterior. Uma homenagem sentida, que só contribuiu para que o carácter emocional deste concerto se tornasse ainda mais significativo. Afinal de contas, uma das maiores almas criativas da história da música estava finalmente cá, em Barcelos, no “nosso” Milhões de Festa, a interpretar hinos como “Hallogallo”. Palavras para quê? Vimos um mestre em acção.
A tarefa de actuar depois de uma figura mítica é extremamente ingrata, e infelizmente, Aaron Doyes – a representar os Peaking Lights (em formato Acid Test) - proporcionou um concerto minimamente decente, á base de uma suave electrónica psicadélica, mas que facilmente se evaporou da nossa memória. Cá o esperamos noutra ocasião, com a presença da metade feminina da banda - Indra Dunis.
Quem provocou bastante impacto foram os londrinos Hey Colossus. Activos desde 2003, brindaram a audiência com um sludge psicadélico, alternando constantemente entre o peso e a melodia com uma mestria louvável. A exemplo de uns High On Fire ou Earthless, estamos perante uma banda de guitarras – basta ouvir um tema como “Sisters And Brothers” para chegarmos a essa conclusão. Uma estreia magnifica, esperando-se agora uma nova passagem por terras lusitanas.
Ao terceiro dia do Milhões, o cansaço já se fazia sentir; no entanto, ainda tínhamos muito pela frente, incluindo a estreia em Portugal do artista londrino The Bug.
Contudo, estivemos antes no Palco Taina, nesta tarde maioritariamente dedicada às sonoridades pesadas, numa curadoria levada a cabo pela SWR.
Os Wanderer, do Porto, mostraram saber fazer um bom thrash/speed metal, sendo uma banda a seguir com atenção no futuro. Passamos de Portugal para o Brasil, onde os D.E.R. convenceram os presentes com um grind brutal e impiedoso, contando com os serviços de um baterista fenomenal e capaz de fazer corar muitos veteranos. Logo a seguir, os conterrâneos Test, que possuem o mesmo baterista, apresentaram uma sonoridade igualmente intensa mas mais complexa e versátil, adicionando alguns elementos de death metal ao grind de raiz. Para terminar, ambas as bandas subiram ao palco e brindaram o público com uma actuação conjunta.
No Palco Milhões, a noite começou com talento nacional, mais precisamente com a dupla açoriana Medeiros/Lucas. Na transição do dia para a noite, ouvir a voz serena e arrepiante de Carlos Medeiros, em temas como “Canção do Mar Aberto” ou “Navio”, foi uma experiência maravilhosa. Além disso, esta união de diferentes gerações entre Medeiros e Pedro Lucas revela-se encantadora, pela forma como moderniza o cancioneiro tradicional açoriano e trá-lo para o presente.
Depois dos Gum Takes Tooth nos terem dado uma curiosa amostra da sua electrónica carregada de noise e sentimento punk, os The Paradise Bangkok Molam International Band maravilharam-nos com os sons tradicionais da Tailândia, reunindo instrumentos típicos do país com uma secção rítmica (baixo e bateria) absolutamente explosiva. Houve danças, “comboinho”, e, no final, comentava-se que este cenário parecia um casamento. Somos forçados a concordar, dada a enorme festa que aqui se viveu.
A armada portuguesa nesta noite esteve representada com dois projectos portuenses - os
Dreamweapon e os Plus Ultra. Os primeiros provaram que são uma das propostas mais promissoras dentro do space rock/dream pop, enquanto que os segundos foram novamente um furacão de rock desenfreado em cima do palco, embora não tenham tido o mesmo nível de intensidade que exibiram em locais como o Cave 45 ou o Porto-Rio.
Coube aos londrinos Bad Guys preencher a vaga deixada pelos Goblin, e no lugar das sonoridades progressivas adaptadas para o cinema de terror de Dario Argento, tivemos sludge com recheio de hard rock, não faltando um enorme sentido de humor, perfeitamente exemplificado em temas como “Prostitutes (Are Making Love In My Garden)”. O resultado foi uma actuação de alto nível, que só pecou pela parca comunicação com o público.
Finalmente, o momento mais esperado deste último dia: Kevin Martin, aka The Bug, chegou a Barcelos, acompanhado pelos MC Flowdan e Manga, para dar um concerto que irá para sempre ficar guardado na memória de quem lá esteve. Com um volume ensurdecedor, ao ponto de disparar alarmes de carros, fomos progressivamente enfeitiçados por uma intensa dose de eletrónica e hip-hop , numa indescritível porrada sonora, tanto para a alma como para o corpo. Não haja dúvidas, estamos perante um animal violentíssimo.
Depois deste terramoto, os colombianos Meridian Brothers conseguiram pôr a mexer quem ainda tinha energia para tal. Misturando rock argentino com samba e outros ritmos latinos, foram uma das grandes surpresas do festival, daquelas que ninguém presente irá esquecer. Para além de originais, como “Salsa Caliente”, ainda nos deliciamos com uma cover de “Purple Haze” (aqui intitulada “Niebla Morada”), de Jimi Hendrix.
Após um fim-de-semana perfeito, ficamos logo com saudades do Milhões de Festa. Volta rápido!
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Organização:lovers & lollypops
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sexta-feira, 22 novembro 2024