Reportagem Milhões de Festa 2016
Por esta altura, já não se pode negar a singularidade do Milhões de Festa. Reunindo algumas das mais entusiasmantes e vanguardistas propostas musicais com um notável espírito de diversão, o Milhões é, acima de tudo, uma experiência inesquecível. Podemos dar um mergulho ao mesmo tempo que curtimos um concerto ou DJ set, deslocar-nos ao Palco Taina para ouvir música e apreciar a típica gastronomia minhota ou, através das Arruadas Merrell, descobrir bandas enquanto exploramos a pacata e bonita cidade de Barcelos. È essa a beleza do Milhões, um festival vibrante e dinâmico que só pode ser compreendido se for intensamente vivido.
Depois do arranque de quinta-feira, onde a programação se concentrou no Palco Taina, o dia de sexta proporcionou-nos, entre outras coisas, uma excelente tarde na já mítica piscina, onde destacamos as actuações dos Wume e de Nicola Cruz. Os primeiros, de Baltimore, decoraram o cenário idílico onde se encontravam com envolventes paisagens krautrock, permitindo-nos dar um pezinho de dança mas também sonhar infinitamente. Quanto A Nicola Cruz, chega a ser difícil exprimir por palavras a majestosa festa que foi a actuação deste senhor. Filho de pais equatorianos, reúne a essência musical da América Latina e transporta-a para o universo da electrónica. O resultado? Uma das mais alegres celebrações musicais ao qual assistimos durante o fim-de-semana.
Depois da pausa para jantar e restabelecer energias, onde quem permaneceu no Palco Taina pôde dançar ao som da “Rádio Popular” de Paulo Cunha Martins (claramente um dos destaques desta edição), Os vilacondenses Evols iniciaram a programação da noite com um concerto que, infelizmente, se revelou algo apagado e desprovido de energia. Melhor esteve o colectivo Goth Money Records, aqui em formato duo. Apesar do atraso, estes dois jovens da Geração Z oriundos de diferentes cidades americanas (maravilhas possibilitadas pela Internet) contagiaram os presentes com uma pulsante fórmula de hip-hop que brinca ocasionalmente com a electrónica. Sentimos que ainda os veremos com mais impacto no futuro - sobretudo quando cumprirem a promessa de regressarem com todos os elementos do colectivo – mas o que nesta noite nos foi oferecido abriu o apetite.
Seguiu-se a primeira das revelações do Milhões de Festa 2016 – os Sons of Kemet. Tendo em Shabaka Hutchings, que por cá já tinha passado com The Comet is Coming e Melt Yourself Down, um carismático guia espiritual, embarcaram numa aventura sonora que os levou tanto ao território do jazz como ao da world music. Shabaka, que tem no saxofone um eloquente meio de expressão, assemelha-se por vezes a um Pharoah Sanders dos tempos modernos, ao passo que a tuba de Theon Cross, juntamente com o poder de dois bateristas, enriquece ainda mais as ambiciosas explorações sonoras do grupo. Alterando entre o registo de festa e a mais pura e libertadora viagem cósmica, Os Sons of Kemet aterraram em Barcelos (talvez vindos de um encontro com Sun Ra em Saturno) e rapidamente conquistaram os nossos corações.
Já tínhamos enfatizado anteriormente o carácter eclético do Milhões, sendo que a colaboração tripla de Marshstepper +HHY+Varg certamente simbolizou uma mudança sonora bastante radical. Na verdade, ninguém sabia muito bem o que ia sair daqui, mas a revelação desse segredo não desiludiu. Apostando numa bizarra sessão de electrónica experimental e ritualista (certos momentos recordaram a atmosfera dos concertos de Pharmakon ou Puce Mary), deixaram-nos mental e fisicamente arrasados. Simplesmente demolidor.
Os Goat passaram por Barcelos para nos deixarem estupefactos com um dos melhores concertos do festival. Mais do que uma simples banda, estes suecos englobam diferentes expressões artísticas para assim criarem um espectáculo único e esplêndido. As danças, as máscaras, todos esses elementos cénicos e as minuciosas coreografias coexistem com uma absorvente mistura de rock psicadélico e afrobeat – na verdade, de tudo que os sete músicos quiserem. Há sempre muita coisa a acontecer, as músicas parecem funcionar como uma só e nunca sabemos bem o que esperar. Ouvimos “Let it Bleed”, “Run to Your Mama” e muito mais num concerto que, entre guitarras, baixo, percussão, bateria e duas frenéticas vocalistas, nos fez viajar por vários mundos musicais e que provou que o misterioso colectivo é mesmo um dos nomes mais apaixonantes da actualidade.
O Milhões do ano passado ficou marcado pela estrondosa estreia em Portugal do The Bug, um dos (muitos) projectos do prolífero Kevin Martin. A recepção foi tão calorosa que o músico e produtor britânico voltou este ano, mas em formato mais relaxado e de onda caribenha, acompanhado da israelita Miss Red. Antes de mais, há que elogiar a prestação desta senhora: dona de uma voz poderosa e de uma actuação de palco emblemática e com um leve toque de sensualidade, foca em si as atenções enquanto Kevin Martin, mais escondido, debita fortíssimas batidas. Sim, porque lá por ser mais festivo, não quer dizer que tenha perdido intensidade – o concerto foi novamente uma experiência ensurdecedora, um cruel ataque aos tímpanos de qualquer um. Acima de tudo, constituiu um inspirado e memorável retorno que provou que The Bug é um organismo mutante, capaz de se adaptar a novos ambientes e reinventar-se. È sempre bem-vindo, Kevin.
23 de Julho
Neste segundo dia da aventura Milhões de Festa, assistimos novamente a grandes concertos, sendo que os principais destaques aconteceram nos campos do rock e da música mais exótica.
No que às guitarradas diz respeito, os Big Naturals mostraram ser uma das melhores bandas de stoner/ space rock dos dias de hoje. Alguns poderão achar que o estilo já há muito que atingiu o ponto de saturação, mas a fórmula do duo revelou-se particularmente entusiasmante, o que não é de estranhar se tivermos em conta que se tratam dos elementos que, juntamente com Paul Allen, formam os Anthroprophh responsáveis no ano passado por autênticas marés de distorção neste festival minhoto. Além disso, como se a prestação dos Big Naturals não estivesse já a um nível elevado, o referido membro dos The Heads fez uma aparição neste concerto, tornando a tarde na piscina ainda mais incrível.
Por falar nos The Heads, a banda de culto oriunda de Bristol pisou o Palco Milhões para mostrar como se faz rock e provar que a chama ainda não se apagou – na verdade, pelo que vimos, continua a arder bem. Destilando psicadelismo pesado e arrastado, formaram uma esmagadora parede de som, onde riffs pujantes eram repetidos até à exaustão ao ponto de criarem ondas soberbas de um minimalismo irresistivelmente ruidoso. Quando pensamos em bandas de guitarras, vêm-nos à cabeça nomes como os Kyuss, High on Fire, Earthless, entre outros, mas a verdade é que os The Heads são também verdadeiros embaixadores do riff. Com este concerto, fez-se história no Milhões.
Uma das revelações deste dia foram os Bixiga 70. Oriundos do centro de São Paulo, são dez músicos em palco que formam uma autêntica orquestra - dois saxofones, trompete, trombone, teclados, guitarra, baixo, bateria e muita percussão –, espalhando a riqueza da música brasileira ao mesmo tempo que invocam o legado afrobeat de Fela Kuti. Com uma sonoridade que desperta uma súbita e irresistível vontade de dançar, obtiveram uma das mais efusivas reacções do público durante o festival.
Islam Chipsy foi o senhor que se seguiu e a verdade é que estamos perante um indiscutível fenómeno não só de popularidade, como também de qualidade. O músico egípcio fez-nos abanar o corpo com os mirabolantes sons do seu teclado e as possantes batidas dos seus dois bateristas (os EEK). Basicamente, ver Islam Chipsy ao vivo significa dançar como se não houvesse amanhã e recordar essa diversão no dia seguinte com um sorriso nos lábios e uma enorme vontade de repetir o momento. Mais do que um simples concerto, a derradeira celebração. Partindo da música tradicional árabe, o artista do Cairo conduz o público numa aventura sonora surreal.
Neste dia destacou-se ainda, na piscina, a actuação dos franceses We Are Match, donos de uma belíssima pop com sabor a Verão e a tudo o que a vida tem de bom e simples. Devido a problemas técnicos que, infelizmente, atrasaram a subida ao palco e encurtaram a actuação, sentimos que faltou algo mais e que, muito provavelmente, mereciam um palco maior. Ainda assim, provaram ser uma banda a manter debaixo de olho.
Curiosamente, Dominique dumont, que actuou no Palco Lovers, teria criado ambiente na piscina, já que a sua pop doce misturada com uma eletrónica serena combina com esse maravilhoso local de descontracção pura. Ainda assim, o concerto foi bastante eficaz. Adrian Sherwood, por seu lado, não podia ter actuado num local mais adequado, tendo mostrado o porquê de ser considerado uma lenda com mais de três décadas de currículo ao encher a piscina de boas ondas dub. Um verdadeiro mestre em acção.
Já Sun Araw nada mais fez do que desiludir. O projecto experimental de Cameron Stallones, aqui em formato trio, enfrentou problemas técnicos que obrigaram os músicos a abandonar temporariamente o palco, mas, quando voltaram, não reuniram qualquer tipo de atmosfera. Na verdade, tudo soou desinspirado e sem rumo; por muito interessante que Stallones consiga ser em certas alturas, aqui a experiência não obteve resultados desejáveis. Já Gaika (que no dia anterior chegou a juntar-se a The Bug e Miss Red) revelou-se um dos nomes mais promissores deste dia; munido com o seu grime potente e variando entre um clima de energia e atmosferas mais intimas (a certa altura, acenderam-se isqueiros), o MC sediado em Londres debitou rimas com paixão e, no final, obteve respeito por parte do público.
24 de Julho
Há sempre uma certa tristeza quando chegamos ao último dia de um festival. O mundo de diversão no qual mergulhamos temporariamente como um crucial escape à rotina diária está prestes a acabar e posteriormente tudo regressa ao normal. No entanto, ainda havia, no Milhões, muita coisa para ver e ouvir.
Começamos pelas dinâmicas Arruadas Merrell, onde o Sol Sistema, colectivo formado por O Gringo Sou Eu e DJ VA, assumiram o papel de mestres de cerimónias e guiaram os presentes em caminhadas até ao local do concerto, sempre com música proveniente de um equipamento movido a energia solar. Neste dia, o sítio escolhido foi a Câmara Municipal de Barcelos, que recebeu os noruegueses Ich Bin N!ntendo para uma valente sessão de punk recheado de noise, onde o espírito de rebeldia andou de mãos dadas com o experimentalismo desenfreado.
A exploração sonora marcou igualmente presença no Palco Taina com os londrinos Orchestra Elastique, que proporcionaram uma agradável sessão de improvisação pura, com a música a seguir direcções absolutamente imprevisíveis - ora ruidosa, ora mais calma, e sempre com uma impressionante variedade estilística. Na piscina, o argentino Barrio Lindo deliciou-nos com ritmos quentes e latinos.
Já muito discutimos a plataforma de descoberta, o laboratório de novos talentos, que faz parte do Milhões de Festa. A juntar a essa lista encontram-se os Evil Blizzard. Quatro baixos como meio de atingir uma saudosa distorção, máscaras inspiradas num cenário de filme de terror, um stoner que se aproxima do universo psicadélico e um espectáculo divertido e interactivo – foi esta a fórmula usada para um dos melhores concertos deste dia. Houve até membros do próprio público a participarem activamente nesta surpreendente celebração, quebrando quaisquer barreiras ao subir ao palco e, em alguns casos, ao assumir o controlo dos instrumentos. O milhões é mesmo isto – o espaço que possibilita o impossível e que nos deixa incrédulos .
E o que dizer dos Part Chimp? Bom, talvez que foram autores de um dos mais fenomenais concertos não só do festival, como do ano. Isto, senhoras e senhores, foi uma lição de como dar um espectáculo de rock inesquecível. Apoiados numa receita sonora onde a ensurdecedora distorção das guitarras assume um papel crucial, brindaram-nos com uma suada, pesada e selvagem sessão de noise e de sludge… agora percebemos o que é que os Mogwai viram nestes londrinos e porque é que os quiseram ter na sua editora.
Contudo, o peso não ficou por aqui, pois ainda assistimos aos Oozing Wound a deixarem-nos arrasados com uma intensa dose de metal (bem próximo do thrash) temperado com espírito punk.
No meio de tanta agitação, houve necessidade de relaxar o corpo e a mente. El Guincho, que por cá já tinha estado em 2010 (na altura em que Espanha, o seu país natal, era a campeã europeia, como chegou a mencionar) trouxe a boa onda solarenga das suas composições tropicais, onde a pop sorridente convive harmoniosamente com uma electrónica dançável. No final, num dos momentos mais memoráveis do festival, o já habitual “comboinho” voltou em força para terminar com chave de ouro a festa.
São poucas as palavras que descrevem fielmente o quão épica foi esta nova passagem de Dan Deacon pelo nosso pais. Desde concursos de dança a balões e bolas de praia a voar no meio do público, o músico norte-americano protagonizou uma das mais inacreditáveis festas que alguma vez vimos, tudo isto ao som de uma brilhante pop/electrónica tresloucada. Formidável actuação.
Aguardados por muitos, os Ho9909 assinaram uma das mais devastadoras actuações que alguma vez testemunhamos em qualquer festival. Com uma explosiva mistura de hip-hop e hardcore, uma amálgama de estilos implacável e alucinante, não deram descanso a ninguém e originaram um colossal muro sonoro. Terminando o concerto com uma homenagem aos Bad Brains, só nos resta dizer que ainda vamos ouvir falar muito deste duo e das suas intensas e arrepiantes prestações. Nasceu, nesta quente noite de Verão, um novo fenómeno.
De resto, com um fim-de-semana assim, sentimo-nos gratos por haver um evento que nos permite passar tão bons momentos e descobrir alguma da melhor e mais inovadora música feita nos dias de hoje. Para o ano lá estaremos novamente!
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sexta-feira, 22 novembro 2024