Reportagem Milhões de Festa 2017
Festivais há muitos, mas poucos são tão únicos como o Milhões de Festa, que na sua décima edição (oitava em Barcelos) continuou a apresentar a música como uma arte sem barreiras estilísticas e geográficas: houve rock do Reino Unido ou da Califórnia, mas também sons tradicionais de África, ou misturas entre mundos que, à partida, seriam incompatíveis. É esse contagiante espírito que faz deste evento um acontecimento tão aguardado – isso e o ambiente de pura descontracção que por lá se vive. Ir ao Milhões é entrar num universo à parte onde se pode visitar a bela e pacata (aqui bem mais movimentada, como é óbvio) cidade de Barcelos ou apreciar um concerto enquanto se toma uma bebida ou se dá um mergulho na piscina - um local vulgar que, no contexto deste festival, se torna verdadeiramente especial. Contudo, este dia – o primeiro a pagar e com todos os palcos a funcionar – ficou marcado pelos concertos que ocorreram já de noite, nos palcos principais.
Fruto de uma residência artística proposta pela organização, os Faust e Gnod criaram um dos espectáculos mais impressionantes do festival. Na verdade, mais do que um simples concerto, o que aqui tivemos foi uma autêntica performance onde a componente cénica esteve em destaque. Houve uma funcionária do festival a varrer o palco ou mulheres de burca a carregarem membros de manequins e a dançarem com os mesmos, sendo que a certa altura mais parecia que tínhamos viajado até ao mundo de David Lynch. A exemplo do imaginário surrealista do consagrado realizador norte-americano, no mundo dos lendários kraturockers também tudo pode acontecer, ainda para mais quando se associam aos experimentalistas desenfreados dos Gnod. Daí que a inclusão de betoneiras como instrumento musical – neste caso, fonte de ruído e objecto de precursão - seja perfeitamente normal. O mesmo em relação ao bidão de metal, entregue ao público para que este lhe batesse com um tubo. Com os Faust e Gnod, a regra é que não há regras - o que importa é a reinvenção artística através da livre exploração de sons e diferentes conceitos. Uma prestação verdadeiramente ousada, apreciada por uns e incompreendida por outros, mas que certamente não deixou ninguém indiferente.
Directamente de Los Angeles para Barcelos, The Gaslamp Killer provou o quanto a electrónica consegue ser expansiva. Ávido coleccionador de discos desde os tempos de adolescente, o artista californiano percorreu vários mundos durante um set longo (cerca de 1h45) mas que conseguiu (quase) sempre prender a nossa atenção. Tal como o festival onde se encontrava a actuar, a sua filosofia musical defende o ecletismo máximo, havendo espaço para tudo: um pouco de metal com recordações de Slayer e Metallica, uma viagem ao grunge de Seattle com Nirvana ou ao trip hop de Bristol com Portishead, sem esquecer o presente da música alternativa representado com Kendrick Lamar ou Death Grips. Pelo meio, houve referências à herança musical da Síria num tributo à avó de GLK ou aos sons da Turquia em homenagem ao avô, e no final até escutamos uma remistura do famoso tema “The Imperial March” da franchise Star Wars. Houve isto e muito mais, numa selecção musical imprevisível (passava para algo completamente diferente sem aviso prévio, a um ritmo frenético) e extremamente variada, levada a cabo por um dos maiores melómanos dos últimos anos e um verdadeiro mestre da sua arte. È que Gaslamp não se limita a passar música, faz questão de a manipular ao seu gosto, possuindo uma técnica verdadeiramente impressionante. Goste-se ou não do que faz, é impossível – até mesmo para quem prefere o uso de instrumentos tradicionais – não respeitar as capacidades deste homem.
O Milhões sempre revelou uma louvável tendência para apostar nos nomes de amanhã, e sexta-feira quem mais se destacou nessa categoria foram as Sacred Paws. Divididas entre Glasgow e Londres, a banda formada por Rachel Aggs e Eilidh Rodgers apresentou um delicioso indie com leves pitadas de punk e uma refrescante influência de ritmos africanos. Constituem a banda sonora ideal para o Verão e, acima de tudo, para a piscina do Milhões, e é precisamente por isso que a decisão de as colocar no Palco Lovers, numa altura em que a noite já ia avançada, foi francamente questionável. Mesmo assim, não deixaram de assinar uma prestação deveras competente e, com canções como “Everyday”, mostraram ser uma das mais excitantes propostas do actual universo da música alternativa. A julgar pela reacção calorosa que obtiveram, escreveram em Barcelos o primeiro capítulo do romance com o público português. Espera-se agora um regresso em nome próprio – o mais depressa possível.
Pelo meio, neste dia cheio de concertos, ainda pudemos testemunhar a força dos belgas Cocaine Piss - manifesto punk/ hardcore liderado por uma imparável vocalista que ora está em palco, ora decide andar pelo meio do público - o furacão stoner/psych chamado Blown Out, que devastou todos aqueles que se dirigiram ao palco Taina durante a tarde, ou Mehmet Aslan, que, na piscina, deliciou os presentes com os ritmos quentes e espirituais da Turquia.
No entanto, houve muito mais a acontecer, já que no Milhões a diversão nunca tem fim… é esse o seu encanto.
O segundo dia registou a maior enchente do festival à custa do regresso dos Graveyard. A banda, que há seis anos actuou neste mesmo recinto, anunciou a sua separação em Setembro do ano passado só para revogar a decisão quatro meses depois, para a felicidade dos seus seguidores.
Contudo, a actuação esteve longe de ser consensual. Ainda que uma fatia do público tenha saído satisfeita, sentiu-se a ausência da magia de outrora, tendo o grupo adoptado uma postura bem mais contida. O concerto foi, ainda assim, bastante competente e houve momentos em que a chama do rock se acendeu temporariamente, mas faltou a força que costumavam ter, hoje em dia perdida num passado bem mais excitante.
Todavia, com toda a oferta que o Milhões possui, este dia acabou por ser, muito curiosamente, o mais forte. Horas antes dos Graveyard, os Sly & the Family Drone protagonizaram uma celebração anárquica na piscina. A exemplo de bandas como os Putan Club ou os Monotonix, tocam no meio do público e, como já era de esperar, tudo aconteceu neste cenário: houve crowdsurfing por parte do grupo, espectadores que participaram activamente no concerto ao tocar com as baquetas distribuídas pela banda, timbalões a circular, pessoas a assistir à actuação em cima do palco - basicamente, uma festa louca, levada a níveis extremos de intensidade e imprevisibilidade. A palavra de ordem foi caos, incluindo no campo artístico, já que os britânicos são autores de uma insana, ensurdecedora e diabólica amálgama de drone, noise e free jazz. Um concerto incrível que nunca – mas mesmo nunca – será esquecido por todos aqueles que o presenciaram. Fez-se história no Milhões.
De volta ao palco principal, Yussef Dayes encantou quem o viu. Estávamos em 2016 quando o mundo do jazz - e da música em geral - foi apanhado de surpresa com a edição do brilhante “Black Focus”, álbum lançado sob a designação Yussef Kamaal e gravado juntamente com Kamaal Williams, que entretanto se separou do seu parceiro musical. O inesperado fim da magnífica colaboração fez com que ambos começassem a tocar a solo e o Milhões acabou por receber um dos músicos a interpretar a aclamada obra.
A situação pode parecer estranha, mas o concerto foi um dos momentos mais altos da décima edição do festival minhoto. Yussef, antes de mais, é um baterista fenomenal, exibindo imensa destreza ao mesmo tempo que se faz acompanhar de uma excelente banda: Charlie Stacey nos teclados e Mansur Brown no baixo e guitarra. Este último surpreendeu o público com um esplêndido solo de guitarra recheado de alma e com a doce certa de virtuosismo - um dos muitos destaques de um concerto sublime em que o jazz foi o ponto de partida para uma exploração sonora que incluiu igualmente os universos do funk, do blues e até do rock. Se no início a audiência se mostrou tímida, no final estava rendida.
Quem também provocou impacto neste segundo dia foi Camae Ayewa, mais conhecida como Moor Mother. Artista, Poetisa, activista e professora, debita poemas de intervenção que denunciam as injustiças do racismo sistémico da América - os sons são as armas, as palavras as balas. È raiva que se manifesta em ataques sonoros de noise, hip-hop e punk, com força suficiente para nos transportar para o mesmo mundo de violência e miséria no qual a artista de Filadélfia cresceu. Acima de tudo, é arte feita para provocar desconforto, levada a cabo por alguém com muito para dizer. Uma experiência avassaladora.
Antes, os maravilhosos Sex Swing, banda composta por membros de Dead Neanderthals, Part Chimp e Mugstar, criaram magia no Palco Lovers. Detentores de uma sonoridade bizarra, em que um saxofone descontrolado e selvagem decora cenários psicadélicos feitos à base de noise, krautrock e electrónica, proporcionaram viagens alucinantes desde o primeiro ao último minuto.
E o que dizer de Janka Nabay e o seu Bubu Gang? Oriundo da Serra Leoa, viu o seu país ser devastado pela Guerra Civil na década de 90, o que faz com que os seus apelos à paz durante o concerto sejam realmente genuínos, o resultado de ter visto as consequências nefastas do confronto bélico. No entanto, Janka tem à sua disposição uma arma para combater a negatividade, pelo menos a um nível espiritual: a música bubu que, reza a lenda, foi roubada a bruxas há mais de 500 anos por um rapaz da Serra Leoa. Na impossibilidade de confirmar a veracidade dessa história, limitemo-nos a relaxar e a dançar ao som destes ritmos quentes e deliciosos, que nos deixam com um sorriso na cara. Só isso importa aqui.
Neste dia preenchidíssimo, ainda tivemos oportunidade de ver Bitchin Bajas fora do recinto (mais precisamente, no Paço dos Condes de Barcelos) que protagonizaram uma encantadora sessão de electrónica ambiental, o grind potente dos Brutal Blues no Taina ou a dureza da electrónica experimental de Yves Tumor no Palco Lovers. Depois de tudo isto, resta-nos perguntar: Graveyard quem?
O último dia do Milhões ficou marcado por duas coisas: a infeliz ausência de Powell (que esperamos que nos compense em breve) e a prova de que o rock não morreu - está bem vivo e cheio de saúde.
Logo no início deste último dia de concertos, as galegas BALA foram uma óptima surpresa, contagiando o público do Taina com um punk simples, directo e cheio de garra. Logo a seguir, fomos até à piscina testemunhar a estreia em Portugal dos britânicos Shame. Misturando na perfeição a melodia melancólica de uns Joy Division com a irreverência de uns Sex Pistols, o grupo londrino exibiu paixão e energia em malhas como “The Lick”, assinando um dos melhores concertos do festival e deixando claro que ainda vamos ouvir falar imenso deles. O futuro do rock passou por Barcelos.
Ainda dentro da oferta vinda de Inglaterra, os Bad Breeding criaram caos no Palco Milhões com um hardcore/punk rebelde a fazer lembrar bandas de culto como os Crass ou Flux of Pink Indians. Soam zangados e com muito para desabafar - talvez pelo recente referendo que deu vitória ao Brexit e que parece despertar um forte sentimento de indignação noutras bandas do país? Não sabemos ao certo, mas o resultado é uma descarga de intensidade irresistível.
Os Meatbodies, liderados pelo simpático Chad Ubovich, mostraram que a California, para além de bom vinho, também produz rock de qualidade. Malhas pysch demolidoras, Imbuídas de espírito punk e recheadas de camadas noise criam a banda sonora rockeira de uma bela e suada noite de Verão, que aqui ainda soube melhor por ter acontecido logo a seguir à actuação desprovida de energia e emoção dos Pop Dell’Arte. Os últimos, por muito respeito que mereçam pelo que foram em tempos, mostraram que o passado nem sempre tem lugar no presente.
Contudo, este último dia viveu também da harmoniosa mistura entre diferentes universos musicais. Sarathy Korwar, por exemplo, provou ser um dos mais criativos artistas da actualidade: pegando nos cânticos dos sidis (comunidade indiana de ascendência africana) e colocando-os num contexto de jazz, constrói cuidadosamente uma sonoridade tão animada quanto cósmica, um produto multicultural feito por alguém que percebe o significado dessa palavra; nascido na América, eventualmente emigrou para a Índia – de onde descendia - tendo finalmente escolhido Londres como local de residência. Na actual conjuntura onde muitos imigrantes enfrentam tempos difíceis, a música de Sarathy tem ainda mais valor e convida o ouvinte a conviver com outras tradições musicais. No Milhões, esse cartão de visita foi apresentado através de uma inspirada actuação (onde no início Hieroglyphic Being participou, tendo mais tarde actuado a solo e ainda substituído Powell) que nos permitiu viajar com os sons de um artista que pertence ao mundo.
Numa das grandes revelações do Milhões, a banda franco-colombiana Pixvae foi uma das mais aplaudidas da noite. Colocam o rock em constante diálogo com a América Latina, as guitarras e bateria coexistem harmoniosamente com o saxofone, a percussão e as espantosas vozes femininas, e tudo soa extremamente bem, porque o cruzamento é feito de forma coesa e inteligente. Pura riqueza musical que provoca o desejo de dançar, cantar e, a exemplo de Sarathy Korwar, celebrar os sons que o mundo tem para oferecer.
O sentido de humor sempre teve lugar no Milhões de Festa, e este ano quem mais se destacou nesse campo foram os Chúpame El Dedo, do colombiano Eblis Alvarez, que em 2015 por aqui esteve com os Meridian Brothers. Originais a nível de som e indumentária (apareceram com trajes do Dungeons & Dragons, a tocar uma espécie de cumbia com uma espécie de death metal), espalham boa disposição e surpreendem com a originalidade. Não deverá haver mais nenhuma banda assim, mas a verdade é que o mesmo se pode dizer acerca do Milhões de Festa enquanto festival.
Chegamos ao fim com memórias de grandes concertos (e uns quantos menos memoráveis, mas nada é perfeito) e tempos incríveis passados a conviver, a explorar e a relaxar. As saudades já apertam, mas pelo menos só temos de esperar um ano para voltar a este cenário. Chega depressa, Julho.
-
Organização:Lovers & Lollypops
-
quinta-feira, 03 agosto 2017