Reportagem Milhões de Festa 2018
A tradição ainda é o que era (e ainda mais um pouco)
Chegamos à estação de comboios de Barcelos carregados de mochilas e sacos-cama, como quem regressa a um lugar e tempo habitué. Depois de meses de dúvida – há milhões ou não há milhões? – foi com alívio e satisfação que pisámos o recinto com a primeira cerveja.
Sob o mote “a tradição já não é o que era”, a Lovers & Lollipops organizou um festival em tempo record, com o de sempre e algumas novindades. O de sempre é o mesmo que dizer uma programação eclética, inesperada e consistente. Saltar de batidas frenéticas para sonoridades eletrónicas, roçar num groove airoso e terminar numa apoteótica banda tribal. E nem sequer precisamos de gastar horas a pesquisar na internet, a selecionar as bandas que mais queremos ver ou a tentar decorar as letras. Basta aparecer. Eles sabem o que fazem. E nós agradecemos.
Outra marca típica do Milhões é a de espalhar concertos pela cidade. Este ano, novamente Ensemble Insano a lembrar os da casa; a ginga bem-disposta de Evil Usses; a chinfrineira de Vaiapraia e as Rainhas do Baile e o doce e denso Johnny Hooker foram os projetos do lado de fora. A tarde de peso e de poço também já é da praxe. Com curadoria do SWR Barroselas, passaram pela taina Pé Roto, Greengo e Nashgul, a criar o caos necessário. Favela Discos, também repetentes, trouxeram consigo quatro projetos vindos de Marte e de outros planetas por visitar. Não é igual aos tempos idos do palco junto ao rio, mas é o que se arranja.
Como se já não bastasse a qualidade das coisas que por lá passam, “o de sempre” é também a sensação de conforto. Estar no Milhões é como estar numa reunião alargada de amigos e amigas, um desfile de empurrões e abraços e “já não te via há bué!”. É ver o Fua e o Márcio a curtir os concertos, é ir comer uma sandes de azeitona à Taina, cumprimentar o Alcino, dar um mergulho na piscina e beber vinho branco ao início da tarde (sempre fica mais em conta).
As novidades foram algumas. O Nico e a Lisete trouxeram-nos Suna Yoga, exercícios físicos no tapete e mantras tocados ao vivo. Só para valentes. Estreou-se também uma chuvada de sexta-feira à noite que veio dar cabo das tendas, mas não dos humores, qual Arca de Noé improvisada. A madrugada de domingo terminou com um dj set silencioso. Simpática a ideia e uma bela forma de contornar as limitações impostas, mas pouco conforme à genica dos corpos àquela hora da matina. Novidade também as performances que foram ocorrendo aqui e ali, como a Motion Within – não sei quantas mulheres enfiadas num carro – ou Phantom Chips, um momento interativo de noise no feminino.
Contrariando a grande maioria dos festivais, o programa deste ano foi diverso, não apenas nos estilos musicais, mas porque trouxe consigo a cena afro, queer e feminista. Não é um pormenor que metade das bandas incluísse mulheres, grande parte delas na linha da frente. Para esse feito contribuiu, e muito, a curadoria da Fat Out, um coletivo de Manchester, autênticas terroristas do género. Corpos felinos, vozes desterradas, ruídos das entranhas, performances que dizem da dominação, da castração, da libertação. Em destaque, a extravagante Marilyn Misandry, um show transformista e grotesco, um murro no estômago. Numa linha mais grrrrl riot, tivemos Mirrored Lips, atitude punk e irónica e um som roto e descompassado; Bala, o duo espanhol destravado, a encher o palco e a causar desacatos; ou as bracarenses Decibélicas, irreverentes, mal-comportadas e a atirar em todas as direções. Numa onda mais experimental, Gazelle Twin introduziu-nos ao seu universo bizarro, obscuro e maciço.
Os ícones da música portuguesa, Ana Deus - a abrilhantar os barcelenses Indignu - e Lena D`Àgua – numa nova cena pop-hipster - foram outras das figuras desta edição.
Nubya Garcia, a saxofonista que tem refrescado o afrojazz e Charlotte Adigéry, a voz vibrante de WWWater foram outras das jovens artistas a causar espanto e inquietação. Para além delas, duas gerações cabo-verdianas. Skuru Fichadú, o punk que se junta ao funaná e que tem sido o projeto sensação deste verão. A rebentar com as colunas, a rebentar com tudo. Na última noite, os grandes Tubarões, com meio século de existência, enfiaram molas nos pés de quem os ouvia. Festa é festa.
Salientar ainda os mais-que-amados Eletric Wizard (foi com eles que ouvi mais riffs em coro); Circle, a banda de culto a fazer uma espécie de medley épico; Warmduscher, o cowboy romântico a espalhar charme e suspiros; os desregrados e alucinados Mouse on Mars; Squarepusher, a causar palpitações com a sua eletrónica transgressiva; Paisel a juntar a batida dos Macumbas a um sax insolente; Heliocentrics a levar-nos numa viagem sem retorno; UKAEA a fazer jus ao trocadilho de Autoridade para a Energia Atómica e, por fim, Sereias, diretamente do submundo portuense, plenos de fúria decadente, a expurgar os males através das blasfémias de António Pedro Ribeiro.
E assim se cumpriu a tradição de deixar precocemente saudades.
Já diziam elas, “Barcelos não presta sem Milhões de Festa! Se o presidente não apoiar, um estalo vai levar!”
PS: Buh para as autoridades policiais que este ano resolveram usar e abusar do protagonismo.
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quarta-feira, 19 setembro 2018