Reportagem NOS Alive 2016
À 10ª edição, o NOS Alive regressou ao Passeio Marítimo de Algés com aquele que poderá ter sido o cartaz mais atrativo dos últimos anos, naquilo que diz respeito ao festival organizado por Álvaro Covões. Contar com bandas como os Pixes, Radiohead, Tame Impala, Arcade Fire, M83 e Arcade Fire é ter o caminho do sucesso já meio traçado à partida. Mesmo no que diz respeito aos nomes alistados para palcos que não o principal, juntar John Grant, Wolf Alive, Hot Chip, Father John Misty, Four Tet e Grimes, revela não um especial olhar atento a novidades a caminho da consagração, mas antes uma consolidada óptica de mercado, naquilo que diz respeito aos fenómenos ditos indie cujo o apelo pode facilmente estender-se a milhares de curiosos.
7 de Julho | Fotos
No segundo dia de festival, anunciou-se que todos as modalidades de bilhetes estariam já esgotadas, mas foi logo na primeira data que as dificuldades de locomoção dentro do recinto se deixavam verificar: dificuldade no trajeto entre palcos, casas-de-banho mal organizadas e algumas filas demasiado extensas, não foram ainda assim suficientes para arruinar a experiência de um festival que coloca para si mesmo uma fasquia de qualidade elevada quanto baste.
Muitas vezes confundível com um qualquer cenário de colónia inglesa, o público que enchia rapidamente a tenda do Palco Heineken mostrou-se desde cedo cativado pela nova sonoridade que John Grant ali apresentou. Assumidamente mais extrovertido do que aconteça nos dois primeiros discos a solo, o artista encontrou em “Grey Tickles, Black Pressure” uma plataforma para a expressão do seu interesse nas tendências disco, tendências essas que aprendeu a incorporar em faixas como “You and Him”, “Snug Snacks”, “Voodoo Doll” e “Disappointing”. Apresentadas por alguém cuja extroversão nunca tivera expressão tão evidente em palco, as faixas do novo disco foram sendo espaçadas por momentos que já podemos guardar como sinónimos de algumas das canções pop mais consistentes da última década: “Pale Green Ghosts”, “GMF” e especialmente “Queen of Denmark” traduzem uma fúria de viver que, em palco, foi capaz de cativar grande parte do público que ali acorreu. Com tanto de versão distópica de Elton John como de messias por aqueles que sofrem com o aprisionamento da própria identidade, John Grant deu já provas suficientes no que diz respeito às suas capacidades de escrita de canções, vemo-lo finalmente em palco ciente desse mesmo facto e divertindo-se enquanto o pisa.
Mesmo ao lado, no Palco NOS Clubing, Branko estendia livremente as suas preferências no que diz respeito à música de dança, indo muito além das tendências exploradas anteriormente com os Buraka Som Sistema. A proposta aqui deixou-se aproximar de um trajeto frenético entre geografias e espaços exóticos com a maior facilidade possível. Soladas numa base electrónica que soube absorver kizomba, semba e kuduro de maneira exemplar, a música que se escutou ganhou folgo especial com a inclusão de momentos que já se reconhecem como pertencentes à editora Principe, que felizmente nos continua a apresentar alguma da melhor música feita nos subúrbios lisboetas. Aparte disso, alguns exercícios com sonoridades mais dub foram suficientes para entusiasmar uma plateia considerável em número.
Por perto, Wolf Alice recordavam um grunge semi-polido (algures entre Hole e o primeiro disco de Placebo) em modalidade de apocalipse informal. Por partes: repescando uma sonoridade datada e reenquadrando-a com um carisma alternativo, a banda londrina não tem grandes dificuldades em chamar para junto de si traços de shoegaze quando necessário.
A caminho do palco principal, avistamos SG Lewis diante de uma modesta plateia de interessados, a fazer soar uma eletrónica quase chill que ia convocando samples a gosto.
Pelo Palco NOS, Black Francis, David Lovering, Joey Santiago, Paz Lenchantin foram os Pixies que mantem sobre si próprios um culto de formalismo que quase se torna incómodo, não se tratasse esta da banda responsável por dois dos álbuns de rock mais viscerais dos anos 80: Surfer Rosa e Doolite. Editados em anos consecutivos, foram nesses dois discos que a maioria das escolhas para o alinhamento da noite recaíram. Se “Bone Machine” tem patente na sua versão em disco muitos dos artifícios de Steve Albini, a verdade é que somente em contexto de palco nos podemos aperceber da energia que mais de 20 anos depois continua a assolar a banda de Boston. O mais recente single “Um Chagga Lagga” não tem grande impacto, algo que jamais poderá ser dito em relação à sequência, quase no final, de “Where is my mind?”, “Here comes your man” e “Vamos” – e aqui apercebemo-nos de que muito do que nos deu alento durante o concerto dos Pixies foi a nostalgia e as memórias que guardamos associadas a canções que não voltarão a ser escritas (por mais tentativas que surjam) que nos deram o alento suficiente para um concerto que pouco primou pela comunicação.
Dia 8 de Julho | Fotos
Em simultâneo com um final de tarde bem luminoso, os Tame Impala terminavam a sua segunda atuação nos NOS Alive, três anos depois de terem deslumbrado a plateia de então. Este ano, o concerto deu-se por terminado ao som de “New Person, Same Old Mistakes”, do mais recente “Currents”. Com uma linha de baixo que pouco desafia, tudo o resto sintetiza a matriz que dá corpo a grande parte das canções da banda de Kevin Parker pelo menos desde “Lonerism”: uma musicalidade jovem que procura recuperar as ideias do rock psicadélico dos anos 60 em modalidade significada. Não existe grande invulgaridade nestas canções, mas a maneira como as guitarras se diluem nas texturas suavizadas dos sintetizadores assegura um espírito de transcendência controlada capaz de conquistar muita gente. E se “Currents” foi o mote principal para o concerto dos Tame Imapala, o triunfo maior fez-se sentir aquando a explosão de confettis que acompanhou “Feels Like We Only Go Backwards”. Aqui está de facto em causa um single memorável, especialmente pela latência do refrão, efusivo ainda assim o suficiente para pedir audições repetidas, vezes sem conta.
No Palco Heineken, Father John Misty garantia a continuidade da quase-mitologia que o segue enquanto trovador, incansavelmente empenhado em assegurar-nos que a sua carreira vale a pena ser seguida de perto. “I’m Writting a Novel” e “I Love You, Honeybear” são exemplo dessa doutrina folk que J. Tillman tanto apregoa como genuína e que de resto o público numeroso parec seguir cegamente. E com alguma razão: mesmo que os álbuns enquanto Father John Misty sejam apenas dois, o modo como as canções ganham corpo em palco entre devaneios acústicos e excertos de quase swing é surpreendente, não sendo sequer necessário mencionar a presença de palco única que J. Tillman soube desenvolver ao longo dos anos. Ainda assim, a grande atração da noite estava noutro palco.
Radiohead são uma das bandas dos anos 90 que mais acarta sobre si: um percurso discográfico sinuoso na qual sabiamente se deixaram para trás alguns clichés do rock “alternativo” feito então, em prole de domínios e jornadas mais abrangentes. “OK Computer” e “Kid A” assinalam o final de uma década de forma única, altura na qual a banda de Oxfordshire dominou em pleno o equilíbrio entre a vertigem do rock e as ambiências dispersas e fragmentadas das eletrónicas. Entretanto passaram dezasseis anos e alguns álbuns não tão consensuais. Felizmente o mérito quer de escrita quer de execução mantém-se vivido, e ao darem início ao concerto desta noite com as cinco primeiras faixas de “A Moon Shaped Pool”, os Radiohead garantem-nos (ou assim se esforçam) que o seu potencial não se esgotou no passado. Assumidamente exploratório, o disco que a banda lançou este ano segue uma sonoridade imersiva, que deixa os refrães de parte em benefício de uma visão mais complexa e desafiante. Pela extensa plateia ouvem-se comentários como “do que eu gosto a sério é de Radiohead”, já habituais de quem aqui chega a ansiar por singles como “Creep” ou faixas mais confortáveis de outros tempos. Para esses, “My Iron Lung” e “Talk Show Host” serviram de consolação antecipada. Para os demais, foram uma esplêndida forma de transição de sonoridade, num alinhamento que soube fazer justiça às vontades e tendências que os Radiohead seguem e talham atualmente. De uma competência inegável, toda a banda (com menção especial para Jonny Greenwood) respira uma harmonia que não passa despercebida, nem mesmo pela ocasião dos dois encores que recuperaram algumas das canções mais populares do grupo: “Paranoid Android”, “Creep” e “Karma Police” foram para muitos os momentos mais aguardados. Ainda assim, se quiseremos considera-las como êxitos, importa mencionar que as mesmas foram intercaladas com números mais experimentais como “Bloom” ou “Nude”. E sim, foi mesmo desta vez que os Radiohead “cederam” às preferências da maioria do público, mas não sei antes apresentarem uma extensa declaração de intenções sobre a banda que são hoje em dia e o trajeto que pretendem seguir.
Dia 9 de Julho | Fotos
Para o último dia do 10º NOS Alive, por entre todas as bandas que figuram no cartaz e cujos concertos são para muitos já vitórias mesmo antes de acontecerem, Grimes sobressai pelo fator de estreia absoluta em Portugal. Sendo um nome bastante popular entre as camadas mais efusivas da juventude urbana, a artista canadiana não subiria a palco antes da uma da manhã, algo que de resto nos garantiu uma larga margem para oscilar entre palcos e entre bandas.
Pelo Palco NOS, os Band of Horses acompanharam o anoitecer com uma musicalidade que deixou o recato dos tempos das atuações na Aula Magna, e almeja agora algo maior. Refrões simplificados, dinâmicas rítmicas mais apelativas são várias das fórmulas que o quinteto experimenta para mais facilmente cativar quem ouve. Porventura, será mesmo com “The Funeral” do primeiro disco da banda que reúne um consenso maior na plateia, que ainda se recorda daquilo que fez dos Band of Horses um foco de interesse há precisamente 10 anos atrás. Cultivar um estilo próprio, mais do que uma fórmula replicável indefinidamente, exige visão sobre modelos de evolução, formas de progressão, e elementos que possam ser integrados de forma inteligente para estimular continuadamente quem ouve. No caso dos Arcade Fire, a estreia com “Funeral” poderia ter sido somente uma ocorrência passageira – exemplos de bandas que não se destacam além do primeiro álbum abundam – mas felizmente o coletivo da Canadá assegurou desde cedo uma personalidade criativa com muito por explorar. Com quatro discos de estúdio editados desde 2006, o alinhamento que apresentaram nesta noite chegou de forma quase igual a todos eles. Porém, “Reflektor” já data de 2014 e a ausência de canções novas não passa despercebida, ainda que “My Body Is A Cage, “Intervention” ou “Rebellion (Lies)” sejam sempre momentos que ganham um fulgor especial diante de uma plateia tão vasta como a que a banda encontrou esta noite me Algés. Sem dúvida sobrevalorizados – “mas não é só rock com aparato a mais?”, ouvimos atrás de nós – os Arcade Fire mantém-se como uma aposta completamente segura para qualquer programador de festivais.
Mas reflictamos agora sobre risco e sobre adrenalinas inéditas: de forma consecutiva, Four Tet e Grimes demonstram como desafia e como se ganha. Tão distante quanto possível de “Morning/Evening”, o artista trouxe para palco noções e exercícios de cruzamento entre o post-dubstep e IDM. Terminando a atuação com a remistura que construiu para “Kiss it better” e após uma hora inteira a dilatar e triturar as tensões que habitualmente associamentos aos crescendos da música de dança atual, a reflexão sobre as possibilidades para o futuro da música de dança é quase inevitável – bem como, aliás, o próprio conceito de “música de dança”, que Four Tet constrói a partir de ideias tão díspares como folkatronica e trip-hop. Um nome a não perder de vista. O grande momento da noite no Palco Heineken chegaria com a atuação de Grimes: em digressão justificada pelo último álbum “Art Angels”, Claire Boucher mais do que explicar, obriga-nos a encarar a mutabilidade que é permitida a uma figura despreocupadamente pop, nos tempos atuais. E se o disco já encerra em si uma amálgama de referências, impulsos e vontades, a expressão das canções do mesmo em palco é de um fulgor inacreditável. Com bailarinas que também tratam ocasionalmente de alguns instrumentos, Grimes entrega um alinhamento fortíssimo, baseado nas canções mais viscerais do seu repertório. Utilizando a bandeira LGBT como capa, a artista entrega-se a “Flesh Without Blood” ou a “World Princess Part II” com o ímpeto de quem tem tudo a ganhar e muito pouco de que se envergonhar. Num momento a assegurar os gritos e guturais profundos de “Scream”, e no seguinte a harmonizar “Ave Maria” de Schubert, a música de Grimes é um mundo de possibilidades realmente diversas.
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Organização:Everything is New
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quinta-feira, 21 novembro 2024