Reportagem NOS Primavera Sound 2016
Pelo quinto ano consecutivo o NOS Primavera Sound voltou a invadir o Parque da Cidade, tendo proporcionado três dias de convívio e bom som e apresentado um cartaz que soube misturar de forma eficaz nomes consagrados com novas apostas. Foi também o ano em que se verificou a maior afluência, tendo passado, segundo dados fornecidos pela organização, 80 mil pessoas ao longo dos três dias. Contudo, num registo mais negativo, foi notório o ambiente ruidoso em muitos dos concertos, sobretudo nas actuações mais introspectivas. No entanto, face à qualidade do que vimos e ouvimos, o balanço é extremamente positivo.
9 de Junho [Fotos]
A maratona de concertos começou ao som dos Vilacondenses Sensible Soccers. A tarefa de iniciar o primeiro dia de um festival nunca é fácil, mas o grupo provou estar à altura. Em fase de promoção do segundo longa-duração intitulado “Villa Soledade”, mostraram estar cada vez mais maquinais, com cada elemento a dispor de algum tipo de equipamento electrónico, o que não quer dizer que as guitarras e o baixo tenham desaparecido – apenas não têm a importância de outrora. Navegando pelos mares do krautrock, mas sem ignorarem a sensibilidade da pop ou os ritmos dançáveis, ofereceram aos presentes um aquecimento bastante agradável.
De seguida, fomos do palco Super Bock para o palco NOS, onde nos esperava Meghan Remy e o seu projecto U.S Girls, aqui em formato duo. Actualmente em ascensão graças a “Half Free”, lançado pela conceituada 4 AD, a fórmula musical da artista norte- americana radicada no Canadá pode ser descrita como um cruzamento da pop da década de 60 com uma electrónica possante, mas há aqui algo mais: observamos a posse de Remy e sentimos um certo espírito performativo - vemo-la a dançar, por vezes até com alguma sensualidade, mas a convicção com que canta diz-nos que também tem uma mensagem a passar, sendo a música o meio que usa para se expressar. Num concerto bem enérgico, onde até foram distribuídas rosas e posteriormente se varreu o palco, destacaram-se temas como ”Damn That Valley” ou “Window Shades”.
Novamente no palco Super Bock, voltamo-nos a encontrar com Jack Tatum e os seus Wild Nothing, que já tinham estado no Primavera aquando da edição de 2013. Com um novo álbum na bagagem, intitulado “Life of Pause”, o grupo iniciou a sua actuação ao som de “Nocturne” e rapidamente pudemos viajar pelo seu relaxante universo onde o dream pop, o post-punk e o shoegaze se unem para se tornarem num só organismo sonoro. No final, tivemos direito a uma prestação inegavelmente competente que ilustrou o momento positivo que a banda atravessa actualmente.
Também eles repetentes no Primavera, os Deerhunter continuaram a onda de bons concertos e mostraram que ainda são uma das mais dinâmicas forças nos meandros da música alternativa. O segredo de Bradford Cox e companhia reside na forma como, apesar de nunca deixarem de ser uma banda de indie rock, se recusam a ser prisioneiros desse mundo, optando por explorar qualquer território musical que desejem incorporar. Desta vez, a actuação foi menos intensa, mas deliciosamente jovial e descontraída, com temas como ”Helicopter”, “Desire Lines” ou ”T. H.M” a revelarem-se alguns dos melhores momentos.
Já há algum tempo que Julia Holter tem sido alvo dos mais rasgados elogios por parte da crítica especializada, sendo que esse carinho se intensificou com a edição do aclamado ”Have you in My Wilderness”. Não é portanto de estranhar a curiosidade que havia em torno da sua estreia por cá, tendo a artista californiana assinado uma prestação delicada e majestosa. É certo que a sua pop aventureira e de sentimento clássico resulta melhor em recinto fechado, mas não deixamos de ficar encantados com a beleza poética de temas como ”Feel You” ou “Sea Calls me Home”. Resta esperar que o regresso tenha lugar num espaço onde possamos apreciar com mais calma a sua obra.
Quanto aos Sigur Rós, protagonizaram um espectáculo sublime. Servindo-se de projecções para tornar as suas magníficas paisagens sonoras ainda mais visuais, os islandeses, aqui reduzidos aos três elementos essenciais, levaram o público numa íntima viagem pelo seu post-rock celestial, onde a melancolia se torna doce e a tranquilidade das suas composições encontra momentos ocasionais de pura intensidade emotiva. O alinhamento, para a felicidade de muitos, funcionou como uma espécie de best of do repertório da banda, tendo apenas faltado “Hoppípolla”. Após este triunfal retorno, podemos afirmar que testemunhamos um concerto irrepreensível e cujo único defeito foi a ausência de um ambiente propício: pedia-se um clima silencioso, de contemplação, mas obtivemos antes um constante ruído de fundo - algo que, infelizmente, se voltaria a repetir nos restantes dias.
Voltamos ao campo das sonoridades musculadas com os Parquet Courts, texanos actualmente a viver em Nova Iorque e cujo som reflecte o ritmo frenético dessa cidade, resultando num furacão de punk que, contudo, abraça esporadicamente uma certa melodia – como se os Pavement tivessem decidido soar aos Sex Pistols. Depois da beleza etérea de Sigur Rós, estavámos a precisar desta injecção de adrenalina.
O dia nos palcos principais terminou com os Animal Collective, mestres da desconstrução e reinvenção da pop e electrónica, ao qual juntam doses industriais de um psicadelismo bizarro ou de batidas hip-hop. O palco encontrava-se decorado com pinturas, esculturas de bonecos, uma lanterna e, claro, um impressionante jogo de luzes. Com um setlist compreensivelmente baseado na novidade “Painting With”, o grupo norte-americano proporcionou uma grande festa, onde tudo parecia estranho mas divertido. O final com ”FloriDada” encerrou com chave de ouro esta invulgar mas incrível celebração.
Para os mais resistentes, a noite continuou com os Dj sets de Red Axes e de John Talabot.
10 de Junho [Fotos]
O segundo dia do Primavera Sound voltou a iniciar-se com uma actuação nacional. João Vieira, que já tinha marcado presença com os seus X-Wife no Primavera nas Virtudes, dois dias antes, voltou a actuar neste evento com os White Haus, naquele que foi o primeiro concerto de João Doce, o novo percussionista. Munidos de uma electrónica de forte inspiração britânica, conseguiram pôr os presentes a dançar e mostraram estar em excelente forma.
Num tom bem mais calmo, Cass McCombs encantou-nos com a sua folk terna mas firme, num concerto perfeito para o final de tarde e que terminou com a fantástica “County Line”. À mesma hora, tocavam os Mueran Humanos, grupo argentino radicado em Berlim, cujo industrial abrasivo mas também psicadélico revelou-se convincente.
Ao mesmo tempo que os Destroyer, de Dan Bejar, proporcionavam uma agradável actuação (ainda que o som estivesse demasiado alto), os Beak> surpreenderam quem decidiu vê-los. O projecto, que conta com Geoff Barrow, dos Portishead, busca inspiração a diversas fontes -desde o industrial à electrónica - sempre num tom minimalista mas muito denso e com ambiente de banda sonora. Além disso, se por um lado sentimos influências de Portishead, isso não importa. Os Beak> são suficientemente interessantes para serem vistos como um projecto com identidade própria e não como um mero método de Geoff Barrow satisfazer as suas necessidades criativas quando não se encontra a trabalhar com a sua banda de raiz -basta escutar temas como ”Wulfstan II” ou “Yatton” para percebermos isso. Mesmo com alguns problemas técnicos relacionados com o PA, o grupo foi uma das mais interessantes propostas deste segundo dia de festival.
Foi após a actuação de Beak> que tivemos o privilégio de ver Brian Wilson interpretar na íntegra o mítico “Pet Sounds”, um dos mais influentes álbuns da história da música popular americana e que levou a pop ao mais elevado patamar de integridade artística. Trata-se de uma obra complexa, de arranjos minuciosos e de difícil reprodução em palco, mas isso torna-se irrelevante quando o objectivo é ver a lenda a tocar este conjunto de clássicos que marcaram a vida de muitas pessoas e de vários músicos. Claro que Brian Wilson já não é o mesmo de antigamente, a idade pesa e o cansaço é notório, mas não deixa de ser uma emoção quase indescritível estar na presença deste senhor. O concerto acabou, portanto, por ser uma celebração do seu legado, uma oportunidade de recordarmos a magia de temas como “Wouldn't It Be Nice”, “You Still Believe In Me”, “Sloop John B” ou “God Only Knows”. Mas Wilson, acompanhado de uma banda de tamanho considerável, foi ainda mais longe nesta viagem nostálgica e ressuscitou mais pérolas dos Beach Boys como "I Get Around”, “Good Vibrations” ou ”Surfing'U.S.A.“. Quando tudo chegou ao fim, a conclusão era óbvia: este foi um momento verdadeiramente histórico e uma preciosa aula de história.
De volta ao presente, o pós-punk furioso e acelerado das Savages invadiu o Parque da Cidade, e o grupo feminino, à semelhança do que já tinha acontecido nas passagens anteriores pelo nosso país (incluindo a estreia no Primavera de 2013), provou ser uma fonte inesgotável de energia, conseguindo sempre dar um concerto poderoso de cada vez que sobe a um palco.
Este dia foi igualmente marcado por uma fantástica amostra de alguma da melhor electrónica que se produz hoje em dia. Floating Points, projecto do britânico Sam Shepherd, foi um dos destaques. Construindo detalhadas camadas sonoras onde a electrónica coexiste com o jazz ou o rock, surpreenderam muitos dos espectadores que estavam a tomar contacto com o grupo pela primeira vez e mesmo aqueles que já os conheciam. Ecléticos, imprevisíveis e sedutores, deixaram-nos com vontade de repetir a experiência.
Posteriormente chegou o momento de assistirmos ao regresso de PJ Harvey. Com “The Hope Six Demolition Project” na calha, o concerto dividiu-se entre a apresentação do novo material e a inclusão de clássicos como”To Bring You My Love” ou ”When Under Ether”. O que vimos foi um concerto extremamente bem dado, com a senhora Polly Jean a usar o seu carisma e experiência para nos proporcionar um excelente serão. Na verdade, nem necessita de muito, a sua presença e as grandes canções que tem ao seu dispor são recursos mais do que suficientes. Apesar de muitas pessoas terem escolhido pôr a conversa em dia em vez de se concentrarem no que estava a acontecer, esta foi uma actuação extremamente satisfatória por parte de músicos que sabem o que fazem.
Falando de veteranos competentes, os Mudhoney deram uma valente lição de rock a quem quis assistir à aula. Banda de culto da cena grunge de Seatlte, nunca atingiram o estatuto comercial de conterrâneos como os Nirvana ou Alice In Chains, mas não se pense que tenha sido por falta de qualidade. Mostrando que ainda não estão prontos para a reforma, o grupo contagiou os presentes com a sua garra e um repertório de malhas soberbas, incluindo a obrigatória “Touch Me I’m Sick”. Foi mesmo bom!
Os islandeses Kiasmos foram responsáveis por um dos mais memoráveis momentos do dia 10. Houve uma altura em que parecia que o concerto não se ia realizar devido a problemas técnicos semelhantes àqueles que os Korn enfrentaram no Rock in Rio. A banda subiu e saiu do palco duas vezes e já nos sentíamos preocupados… mas felizmente aqui a história teve um final feliz: quando tudo se resolveu, pudemos embarcar numa inesquecível viagem. Através de uma ambiciosa mistura de música clássica com batidas electrónicas, o duo fez-nos dançar mas também sonhar, felizes que estávamos nesta espécie de festa catártica. Entre a serenidade e a energia desenfreada, os Kiasmos conquistaram os nossos corações.
Os Beach House, no Palco NOS, provaram que um concerto de encerramento não tem necessariamente de ser festivo, pode ser algo belo e transcendente. Com Victoria Legrand, senhora de uma voz apaixonada e poderosa, e um instrumental particularmente bem trabalhado, já para não falar no elaborado espectáculo visual, tornaram a noite mágica.
Na tenda Pitchfork, Holly Herndon mostrou o porquê de ser considerada uma das mais arrojadas artistas do momento. Detentora de uma electrónica abstracta e experimental, conduziu a audiência numa viagem por vezes estranha, por vezes ruidosa, mas sempre excitante. Contando igualmente com dinâmicas projecções, não deixou de exibir um lado humano no meio de toda a maquinaria.
11 de Junho [Fotos]
Ao terceiro dia de Primavera o cansaço já se fazia sentir, mas ainda havia muito para ver. A tarde começou com o alegre pop catalão dos Manel que, apesar de ter passado um pouco despercebido, não deixou de ser agradável.
Seguiram-se os Linda Martini, no seu primeiro concerto em terras portuenses desde o lançamento do novo ”Sirumba”. Apesar disso, o alinhamento nem insistiu muito, ou pelo não tanto quanto se esperava, nas novas músicas, o que fez com que a decisão de não marcar concerto em nome próprio no Porto, na mesma altura em que actuaram em Lisboa, tenha sido bastante discutível. Ainda assim, foi bem agradável escutar temas como “Panteão” ou “ Amor Combate”.
Uma das maiores revelações do festival foram os Algiers, banda oriunda de Atlanta que combina estilos aparentemente díspares, como post-punk, blues, gospel, industrial ou hip-hop, mas que possui a inteligência necessária para aperfeiçoar esta amálgama sonora. É arrepiante escutar a voz de Franklin James Fischer e sentir a paixão com que canta músicas como “Blood” ou “But She Was Not Flying”, onde expõe profundas reflexões de cariz social e político. Com uma actuação de alto nível, os Algiers provaram que são, indiscutivelmente, um dos mais promissores nomes do actual panorama musical; bandas assim fazem falta.
Quem também estiveram bem foram os Autolux . Apesar de um início algo morno, o trio rapidamente encontrou a inspiração que procurava e protagonizou uma actuação envolvente, onde as influências de Sonic Youth, as camadas de distorção emotiva típicas dos My Bloody Valentine e as passagens krautrock originaram uma sonoridade contemplativa, quase negra mas com uma luz ao fundo do túnel, num constante jogo de tensão e libertação. Destaque ainda para o desempenho e a presença da baterista Carla Azar.
Car Seat Headrest, ou melhor, Will Toledo, começa a tornar-se num sério caso de popularidade. Se analisarmos bem a questão, a adoração acaba por ser justificável: apesar de ter utilizado as mais modernas ferramentas para promover a sua música através do lançamento de uma série de álbuns no Bandcamp, as composições de Will Toledo vivem no universo dos anos 90, notando-se influências de Yo La Tengo, Guided By Voices ou, em certos momentos, de Nirvana; mas, acima de tudo, ficamos com a impressão de que provêm de um sítio bastante pessoal e que revelam aquilo que lhe vai na alma, sendo talvez essa a característica que o torna tão atractivo: a brutal honestidade. Deu para o sentir isso ao longo do concerto, onde musicas como ”Fill in the Blank” ou “Something Soon” nos deixaram num estado de euforia.
No ano em que comemoram vinte anos de carreira, os franceses Air passaram pelo Primavera para recordar os melhores momentos de um legado construído á volta de uma sábia fusão entre a pop sensível e a electrónica sedutora. Com um esplêndido jogo de luzes, assistimos àquele que pode muito bem ter sido um dos mais bonitos e graciosos concertos deste ano. Tudo foi feito com calma, delicadeza, os sons invadiam-nos lentamente o corpo e levavam-nos para lugares idílicos. No final, o grupo despediu-se com três clássicos do lendário “Moon Safari”: “Kelly Watch the Stars”, “Sexy Boy” e “La Femme d ' Argent”. Uma actuação de elevada qualidade, tanto a nível estético como musical.
Este último dia de Primavera Sound foi igualmente rico no que à música pesada diz respeito. Vimos os Drive Like Jehu, heróis do post-hardcore que revolucionaram o underground dos anos 90, a darem uma belíssima e inspiradora prestação, provando que mesmo com somente dois discos no currículo - e após um longo intervalo de carreira - continuam a ser uma força imparável capaz de interpretar hinos como ”Super Unison” com a mesma força de outrora. Concertos desta qualidade são raros e devem ser celebrados quando acontecem.
Os nova-iorquinos Unsane, mestres na arte de misturar noise com metal e hardcore, castigaram os tímpanos de quem se dirigiu à tenda Pitchfork com uma actuação verdadeiramente brutal, onde se destacaram temas como “Sick” ou “Scrape”. Tal como os Drive Like Jehu, fizeram questão de deixar claro que o facto de serem veteranos não significa que vivam do passado glorioso, continuando a deixar a sua marca no presente.
Quanto aos Shellac, são sempre uma aposta segura: banda residente do Primavera, proporcionam, ano após ano, um excelente concerto e, independentemente da quantidade de vezes que já vimos a banda de Steve Albini, nunca se torna aborrecido voltar a tomar contacto com o seu post-hardcore recheado de noise, onde o peso ensurdecedor coexiste com súbitas mudanças de ritmo e fórmulas complexas.
Ty Segall, homem de inúmeros projectos (ainda o ano passado o vimos em Coura, com os Fuzz) regressou a Portugal para actuar, com os seus The Muggers, no Primavera, onde destilou garage rock psicadélico com a irreverência e entusiasmo que já conhecemos e esperamos dele. Provou também que as músicas do novo ”Emotional Mugger” resultam muito melhor ao vivo, como se viu com a interpretação de malhas como “Squealer” ou “Emotional Mugger/Leopard Priestess”.
Num dia que contou ainda com uma vigorosa sessão de electrónica dos Moderat, o experimentalismo desafiante dos Battles ou o emotivo e doce post-rock dos Explosions in The Sky, podemos afirmar que, mesmo com o barulho indesejado, esta foi uma edição fantástica, senão mesmo a melhor.
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quarta-feira, 22 junho 2016