Reportagem NOS Primavera Sound 2018 - 1/3
Pelo sétimo ano consecutivo o NOS Primavera Sound voltou a invadir o Parque da Cidade durante três dias, oferecendo uma intensa maratona de concertos por parte de alguns dos mais relevantes nomes da actualidade. Reunindo um cartaz eclético numa tentativa de apelar ao maior número possível de espectadores, a edição deste ano ficou marcada, entre outras coisas, por uma nova distribuição de palcos. Para além do Bits - armazém transformado em discoteca e que funcionava como um fantástico mundo à parte no universo do Primavera - destaca-se a substituição da intimista tenda Pitchfork pelo imponente palco SEAT, um sinal não só do crescimento do evento mas da sua inevitável comercialização. Não se pode dizer que o festival tenha perdido totalmente o carácter alternativo que o diferenciava de tantos outros – continua a ser um campo fértil de descoberta musical - mas não há como negar a sua progressiva mediatização.
Seja como for, goste-se ou não dessa evolução, a oferta musical continua a ser o que nos leva a regressar a este maravilhoso recinto ano após ano, numa busca incansável por sensações e memórias inesquecíveis. Foi isso que obtivemos, por exemplo, logo ao final da tarde com a actuação dos norte-americanos Starcrawler. Oriundos de Los Angeles e contando com uma frontwoman verdadeiramente frenética em Arrow de Wilde, proporcionaram uma soberba descarga de rock’n’roll selvagem e sujo, muitas vezes a recordar o legado do mítico Iggy Pop. Podem não inovar, mas malhas – porque é esse o termo mais adequado - como “Ants” ou “ I Love LA” são irresistíveis para qualquer amante de música feita à base de poderosos riffs e explosões de energia. Num concerto verdadeiramente pujante que incluiu o uso de sangue falso e um jovem na audiência a tocar guitarra no final, os Starcrawler provaram que o rock está bem vivo (não seriam os únicos a demonstrar a vitalidade do género durante o festival, felizmente) e constituíram uma das maiores surpresas do primeiro dia, sobretudo depois da ligeira desilusão que foi Waxahatchee. A banda criada por Katie Crutchfield, que no ano passado nos brindou com o delicioso “Out in the Storm”, actuou num palco demasiado grande para a sua música - um indie ora meigo, ora mais musculado, mas acima de tudo cheio de intensidade emocional, ideal para ser escutado num ambiente acolhedor e íntimo. Na ausência dessa atmosfera assistimos a uma prestação minimamente competente mas algo distante, que nunca chegou sequer perto de atingir o encanto que certamente teria tido num cenário mais apropriado… lembramo-nos da tenda que costumava haver aqui.
Se depois da potente e suada sessão de rock dos Starcrawler precisávamos de algo que nos permitisse recuperar o fôlego, esse objectivo foi atingido com a actuação de Rhye. O projecto liderado pelo canadiano Mike Milosh, que contou com a preciosa ajuda de uma talentosa banda de apoio, proporcionou uma doce e pacifica viagem pelo seu universo artístico onde o r&b e a pop se cruzam e nos envolvem numa mágica teia sonora, formando uma colecção de temas delicados, quentes e simplesmente perfeitos para relaxar e sonhar acordado.
Enquanto o talentoso contador de histórias que é Father John Misty encantava quem o ouvia, decorriam outros concertos merecedores da nossa atenção nesse mesmo horário. Um deles era o de Ezra Furman, cujo charme não reside somente no que faz, mas no modo como o faz. Detentor de uma sonoridade de acentuado sentimento americano que bebe inspiração a lendas como Woody Guthrie ou Bruce Springsteen, o músico norte-americano reproduz essa fórmula clássica de uma maneira muito própria e profundamente pessoal. A arte de Furman, músico assumidamente queer, parece viver da vontade de contrariar a ideia de masculinidade associada ao estilo onde se encontra, sendo simultaneamente tradicional e vanguardista. É também repleta de paixão, com Ezra a debitar cada palavra como se não houvesse amanhã, num fantástico exemplo de genuinidade artística que se traduziu numa arrebatadora prestação.
Para o final do dia ficaram reservados dois dos nomes mais sonantes do festival: Lorde e Tyler, the Creator. Completamente distintos a nível musical, partilham, ainda assim, algumas coisas em comum. Ambos eram extremamente aguardados por muito do público presente – Lorde após o concerto no Rock in Rio de 2014, Tyler após cancelar a vinda ao Super Bock Super Rock no ano passado - e no momento em que pisaram os seus respectivos palcos provaram, cada um à sua maneira, o quanto amadureceram como artistas.
Lorde não é mais a menina adolescente da altura de “Pure Heroine”; é hoje uma jovem senhora, mais confiante e experiente, cuja evolução como performer – sobretudo a nível vocal – é surpreendente. Na verdade, já o era quando fomos apresentados, no ano passado, ao magnífico “Melodrama”, um dos melhores – senão mesmo o melhor – álbum pop de 2017. Em palco, acompanhada por dançarinos e recorrendo igualmente ao uso de vídeos, a artista neozelandesa protagonizou uma actuação deveras satisfatória, conquistando a audiência através da magia de temas como “Sober”, “Homemade Dynamite”, “The louvre”, “Team” ou o final apoteótico com “Green Light”. Por entre discursos emotivos – revelou, por exemplo, ter composto “Liability” quando assombrada por sentimentos de solidão, acrescentando que nesta noite não se sentia sozinha - e agradecimentos pela recepção calorosa, Lorde não desapontou. Pode não possuir ainda a capacidade de assinar actuações verdadeiramente explosivas, mas deixou-nos com a impressão de que a sua trajectória a aproxima cada vez mais desses níveis de grandeza.
Tyler, pelo seu lado, não só não desapontou, como arrepiou. O ex- frontman dos Odd Future chegou ao Primavera com um objectivo claro: mostrar a excelente forma em que se encontra tanto a nível criativo (para isso basta ouvir o maravilhoso “ Flower Boy”) como em palco. Debitando temas como “Who Dat Boy”, “ Tamale” ou “See You Again” o rapper controlou a audiência com uma facilidade invejável, numa impressionante troca de energia entre artista e público que provou que Tyler era, sem dúvida alguma, o segundo cabeça de cartaz deste dia. Prestação apaixonada e incendiária de um artista no pico da sua existência, cuja capacidade de alternar eficazmente entre um registo violento e outro mais brando torna-o numa das figuras mais fascinantes do actual movimento hip-hop.
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segunda-feira, 18 junho 2018