Reportagem NOS Primavera Sound 2018 - 2/3
O segundo dia do Primavera voltou a exibir uma interessante panóplia de estilos, sendo que um dos que mais se destacou, tanto em quantidade como em qualidade, foi o rock. Isso ficou claro logo ao final da tarde quando, debaixo de um sol abrasador e perante uma plateia ainda reduzida, os Black Bombaim tomaram de assalto o palco Super Bock e mostraram que a chama do stoner psicadélico continua bem acesa. Se nos últimos tempos o grupo barcelense tem abraçado cada vez mais o mundo das colaborações numa constante expansão do seu universo musical, aqui apresentaram-se em formato trio e num registo de rock instrumental pujante, próximo da atmosfera que marcou os primórdios da sua existência. A única diferença, claro, é que hoje formam um núcleo muito mais coeso, resultado dos anos de estrada e do contacto com diferentes realidades. Em 2018 observamo-los em palco, já no auge da sua maturidade artística, e sentimos que cada elemento é uma peça essencial deste puzzle sonoro. O baixo pulsante de Tojo Rodrigues e as batidas certeiras do baterista Paulo “Senra” Gonçalves formam a base rítmica necessária para que Ricardo Miranda possa pintar estas composições com os tons quentes e abrasivos da sua guitarra, e juntos produzem a perfeita tempestade rock. Podemos já os ter visto muitas vezes, vamos continuar a vê-los no futuro, mas nunca nos iremos cansar.
Seguimos para o palco principal onde testemunhamos um furacão britânico chamado IDLES. Quem já estava familiarizado com o potente álbum de estreia “Brutalism” sabia o que podia esperar, mas aqueles que desconheciam a força desenfreada que caracteriza o quinteto de Bristol ficaram certamente boquiabertos… na verdade, será seguro afirmar que até aqueles de nós que já os conhecíamos não esperávamos algo tão formidável. Mesmo num palco demasiado grande para a sua sonoridade, o grupo soube contornar esse problema e brindou-nos com uma incrível prestação onde a fúria do punk conviveu ocasionalmente com a tensão do post-punk. Houve canções dedicadas ao recém-falecido Anthony Bourdain e à União Europeia, houve mosh e elementos da banda a passear pela extensão do palco ou pelo meio do público, e acima de tudo houve muita diversão, energia e vitalidade. Se já foi assim neste cenário, só podemos imaginar o que o grupo fará em Novembro, quando regressar em nome próprio ao nosso país.
Há bandas que sabem distinguir-se das restantes ao adaptar uma fórmula refrescante e inovadora; os Zeal & Ardor, que actuaram no palco Super Bock, são desses grupos. Misturando universos musicais completamente distintos e para muitos incompatíveis - leia-se black metal, soul e gospel - cativam por basicamente não soarem como mais ninguém e assumirem-se como lideres em vez de meros seguidores. Ainda que haja espaço para algumas melhorias a nível de composição – algo que acreditamos ser somente uma questão de tempo – têm um potencial demasiado grande, tanto em disco como ao vivo, para que não os mantenhamos debaixo de olho.
Os Shellac são a banda residente do Primavera: ano após ano regressam, e ano após ano continuamos a cumprir o ritual de assistir ao espectáculo deles pois sabemos que vai valer a pena. No fundo, é como reencontrar um velho amigo: recordamos velhas histórias que provavelmente já memorizamos, mas reside nesse acto uma confortável familiaridade que desejamos manter.
Steve Albini pode estar mais envelhecido, mas é uma figura incontornável da música alternativa (trabalhou, afinal de contas, com bandas como os Nirvana e os The Breeders, grupo que marcou também presença neste dia, como fez questão de referir), sendo que a paixão com que actua é incrivelmente contagiante, numa sensacional demonstração de amor à camisola. Sim, já os vimos diversas vezes, mas porquê parar se sentir na pele estas ferozes malhas de post-hardcore/noise rock é uma experiência catártica? Olhando para a audiência e reconhecendo as caras familiares que insistem em manter viva esta tradição, não há mesmo razão para parar. E ainda bem.
O Primavera é um festival marcado igualmente por revelações, e uma das maiores neste segundo dia foram os Superorganism. Sedeados em Londres, decoraram o recinto com uma deliciosa e excêntrica pop de influências electrónicas e cujo imaginário (presente, por exemplo, nas imagens que passavam no ecrã) nos remete para a era da comunicação digital; uma pop colorida, feliz e alimentada por fantásticos coros femininos, que desperta no ouvinte uma irresistível vontade de dançar espontaneamente e viver ao máximo as sensações que invadem o nosso corpo quando em contacto com estes sons.
Mais tarde, no palco SEAT, Fever Ray – actualmente uma activa fonte de expressão artística para Karin Dreijer após o fim dos The Knife - proporcionou uma actuação cheia de contrastes: introspectiva e simultaneamente extrovertida, dançável mas experimental (incluindo no campo visual, com um elenco feminino que envergava roupas extravagantes e usava maquilhagem verdadeiramente bizarra), numa inteligente exploração dos meandros da electrónica recheada de elementos pop e carregada de mensagens políticas e sociais. Um concerto que foi também teatro e que se moveu livremente por ambos os mundos, acabando por surpreender tanto pelo seu carácter único como pela qualidade musical. O mesmo pode também ser dito de Vince Staples, que a par de A$AP Rocky constituiu a oferta de hip-hop do segundo dia, mas que mostrou estar cada vez mais próximo das atmosferas musicais típicas de clubbing do que do género ao qual é associado; claro, há hip-hop, mas também há enormes camadas de electrónica - sobretudo de house ou do techno de Detroit – que fazem com que o autor do genial “Big Fish Theory” seja rei num universo só seu, onde as referências são usadas para construir novos caminhos sonoros. Num espectáculo bastante competente e visualmente ambicioso (onde talvez só tenha faltado o ambiente mais intimista de uma sala fechada), Vince Staples deixou bem claro que está aqui para ficar e que vai continuar a dar muito que falar.
A terminar de forma bastante positiva este segundo dia, os Unknown Mortal Orchestra, projecto de Ruban Nielson, ofereceram uma prestação muito bem conseguida onda as explosões mágicas de psicadelismo e as passagens indie rock criaram uma paisagem musical bastante aprazível.
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terça-feira, 19 junho 2018