Reportagem NOS Primavera Sound 2018 - 3/3
O dia de sábado do Primavera – a derradeira aventura antes de mais uma pausa até à próxima edição - ficou marcado pela forte chuva que teimou em não desaparecer. Não negamos o quão incomodativo isso foi, mas o convívio e os concertos incríveis ao qual assistimos fizeram com que esquecêssemos parcialmente este tempo medonho. Um desses grandes momentos ocorreu com a actuação dos Flat Worms, potente power trio que chegou ao palco SEAT para disparar ferozes malhas de garage rock de forte espírito punk. Uma apaixonada dose de energia rockeira, tornada ainda mais poética devido à chuva que fazia com que a resistência de todos os envolvidos – banda e audiência – só aumentasse ainda mais a beleza desta incrível estreia em território português. Não são os salvadores do rock - ficou bem evidente ao longo do festival que tal não é necessário (bastou ver, por exemplo, a agradável surpresa que foram os espanhóis Belako um pouco antes) -mas certamente que contribuem para a saúde do género.
O sol pode não ter abençoado a passagem pelo Primavera dos brasileiros Metá Metá, mas o grupo de São Paulo fez questão de combater isso e usar a sua música – fusão de jazz com MPB numa receita tão ritmada quanto experimental - para aquecer as almas de quem com eles festejou, numa actuação cheia de força, ritmo e a mais pura exibição de alegria.
Todas estas prestações foram inegavelmente bem conseguidas, mas nenhuma era tão aguardada como a de Nick Cave: horas antes da sua chegada já era palpável o sentimento de entusiasmo que pairava no ar, pois sabíamos que algo de especial ia acontecer… e assim foi.
Com o seu típico ar soturno, mas sempre cheio de classe, Nick Cave foi, do início ao fim, um soberbo mestre-de-cerimónias, levando-nos a mergulhar no mar de emoções que é a sua música. Há na voz do músico australiano uma alma arrepiante que nos toca a todos, uma aura poética poderosa e irresistível. A banda que o acompanha – com destaque para o multi-instrumentista Warren Ellis - é deveras impressionante, mas é em Cave e no seu carisma que as nossas atenções se concentram. Mesmo ocupando hoje o lugar de figura mítica, continua a actuar como se tivesse algo a provar, recusando que as glórias do passado originem uma complacência artística no presente. Nesta majestosa sessão musical houve bonitas passagens ao piano, esquizofrenia post-punk, loucura e doçura e até pedidos do próprio artista por mais chuva; acima de tudo houve magia, o sentimento de que Cave deu tudo o que nos tinha para dar.
Muita dessa paixão pode ser atribuída ao sentimento de perseverança no seu espectáculo: forçado, em 2015, a despedir-se do filho Arthur após um trágico acidente, tem desde então tentado superar uma dor que nenhum pai deveria ter de enfrentar, alimentando-se dessa angústia para criar, como sempre fez, majestosas composições interpretadas com uma intensidade comovente. Nesta noite não assistimos a um mero concerto, mas sim a uma assombrosa sessão de terapia. Observamos um homem que perdeu algo insubstituível – que interessam os sucessos de uma carreira consagrada quando a vida nos tira um filho - e que procura na música, e na proximidade do público para quem a expõe, uma plataforma para se levantar e seguir em frente. Por entre temas como “Jesus Alone”, “Girl in Amber” (ambos retirados do emotivo “Skeleton Tree”, cujas gravações decorreram durante a mencionada tragédia), a frenética “From Her to Eternity ” ou o encerramento com “ Push the Sky Away”, onde várias pessoas subiram ao palco, Nick Cave proporcionou uma actuação catártica; pouco a pouco, a arte vai curando, tanto quanto pode, as feridas de uma alma destroçada.
Quando tudo terminou, colocou-se a inevitável questão na cabeça de muitos: haverá ainda algo mais a ver após esta avalanche emocional? A resposta foi-nos dada logo a seguir por Nils Frahm, autor de um dos mais sublimes momentos desta edição do Primavera. A música do compositor alemão pode efectivamente ser mais indicada para o conforto de uma sala fechada, mas mesmo apresentada num recinto ao ar livre conseguiu emocionar as almas que se deixavam contagiar por esta encantadora colecção de sons. Construindo a ponte entre a música clássica e a electrónica, ente a contemplação e a libertação de energia, Nils Frahm faz da sua música um activo campo de exploração emocional, estabelecendo diálogos sem nunca chegar a proferir uma palavra. Não precisa, no entanto: já diz tudo o que necessita, fazendo-nos chorar de alegria por estarmos a vê-lo e de tristeza por sabermos que esse momento é efémero. No negrume da noite, fomos guiados pela luz de um artista tão delicado quanto denso no modo como se expressa.
Tendo já entrado no campo da introspecção sonora, a transição para a actuação dos Mogwai revelou-se fácil, sobretudo quando o grupo escocês fez questão de nos levar numa bela, emotiva e possante viagem por um mundo onde o post-rock é o idioma predominante. Na eterna batalha entre a doce calmaria e os rasgos arrepiantes de distorção, os Mogwai, a exemplo de Nils Frahm, conseguiram espalhar encanto numa hora pós-Nick Cave, fazendo-nos amar quando pensávamos que já tínhamos dado todo o nosso amor.
E o que dizer de Arca? O músico venezuelano – nome verdadeiro Alejandro Ghersi- protagonizou um verdadeiro espectáculo - não ousamos dizer concerto, palavra que soa perturbadoramente redutora para descrever a performance deste senhor. Performance, sim, é essa a palavra que queremos – a que devemos usar, na verdade. Uma performance que cuspiu com gosto na cara da heterosexualidade, nas ideias retrógradas do que é politicamente correcto, e que celebrou de forma pomposa o uso da arte como livre plataforma de expressão.
Tudo aqui foi ousado - a indumentária, a postura, as bizarras imagens que passavam no ecrã - sendo impossível ficarmos indiferentes depois de absorvermos tudo isto. A passagem deste artista singular não reuniu consenso, até pelo formato da actuação – mistura de live e DJ set - mas foi um dos espectáculos mais corajosos e desafiantes que passaram pelo evento. Era o que se pedia, essencialmente.
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quarta-feira, 20 junho 2018