Reportagem Night + Day Lisboa
Este ano, o início dos festivais deu-se mais cedo.
Foi uma ideia inspirada, a de dar um dia de música mesmo ao lado da Torre de Belém, um dos locais mais bonitos de Lisboa. Este evento de nome Night +Day, organizado pelos The XX (de longe uma das bandas com uma das carreiras mais meteóricas dos últimos anos), resultou tão bem na prática quanto parecia resultar em papel: concertos todos eles bons, apoiados por uma vista lindíssima, e num ambiente relaxado com uma Primavera a saber a Verão.
Com cerca de dez mil pessoas no recinto (números da organização), é até surpreendente a adesão do público a um dia de música que contou com bandas que quase todas já cá vieram mais que uma vez (os The XX ainda no ano passado passaram por cá, no Primavera Sound), dado num Domingo, numa altura em que as férias ainda não chegaram e a crise aperta. A razão deve-se não só aos próprios The XX, que mostraram mais que nunca ter por cá um culto ao nível duns dEUS ou duns The National, mas também ao próprio local, que atraiu muitos turistas (absolutamente encantados com o sítio, andando descalços pelo relvado do recinto), e muitos que, pelas conversas alheias que se iam ouvindo, vieram também porque “Concertos num sítio destes é um luxo”. E é, de facto.
Nem tudo foi perfeito, claro: muitas filas para as bancas dos comes e bebes, não se percebendo também em que é que Kalaf, dos Buraka Som Sistema, ajudou (conforme anunciado) a banda a escolher pratos típicamente portugueses para o recinto (pão com chouriço e Telepizza...?). No entanto era de notar o ambiente relaxado e calmo que se viu ao longo de todo o dia, com um público que esteve nas filas com toda a paciência do mundo, muito diferente do que se veria num dia festivaleiro dum Alive ou dum Super Bock, e de louvar o rigor com que os horários foram cumpridos (apenas os The XX se atrasaram ums míseros cinco minutos). Entre cada concerto no palco principal as pausas eram animadas por dj sets num coreto no centro do recinto, onde Jamie XX (claro) e James Murphy, a encerrar a noite, foram nomes principais.
E se todo o ambiente era óptimo, a isso os concertos só ajudaram mais. Os PAUS iniciaram as festividades e foram, como sempre, competentes no que fazem, com um empenho de louvar perante um público que não é o seu (eram, aliás, a banda que mais destoava do cartaz), entregando uma meia-hora intensa que mostou uma banda tão interactiva (estavam em casa, afinal de contas) quanto bem-oleada. Bastava “Surdo e Mudo”, que encerrou a actuação, para lhes fazer ganhar o concerto. Ao fim do dia, ganharam de certeza mais uns fãs; tanto de cá como lá de fora.
Os Mount Kimbie seguiram-se, e tiveram à sua espera um público receptivo mas não propriamente conquistado. “Quem são estes? Isto não é música!”, ouve-se alguém a dizer na primeira fila, verbalizando um pensamento que certamente deverá ter passado pela cabeça dos muitos que vieram sem conhecer este duo britânico (aqui apoiado por um baterista/baixista) precursor do post-dubstep. Estas são canções boas, que foram entregues de forma mais que compente e energética, mas que pediam uma sala fechada às escuras e não um recinto a céu aberto quando o sol ainda estava lá bem alto. Músicas como “Blood and Form” não entram à primeira, e aquela meia-hora de jogos de camadas que apresentaram não teve grande impacto perante um público que, na sua maioria, não sabia bem ao que ia. Para os poucos que lá estavam também por eles, no entanto, viu-se uma recepção entusiástica, com alguns a entrarem no transe de olhos fechados que as canções dos Mount Kimbie bem pedem. Belo concerto, dado no sítio errado. Mostraram-se em melhor forma (o terceiro membro bem ajudou) que aquela com que se apresentaram no Musicbox, há dois anos atrás, mas faltou a envolvência que a sua música pede; algo a que o som, com a bateria por vezes a deixar de se ouvir, também não ajudou. Mais sorte tiveram Xinobi e Kim Ann Foxman (parte integrante de Hercules and Love Affair), que no coreto conseguiram conquistar os curiosos que se iam amontoando entre concertos, de cerveja na mão e headbanging lento.
John Talabot, que se viu acompanhado por Pional na mesa de mistura no palco principal, fez sucesso com as músicas do tão bem-recebido fIN, grande disco de 2012 que pôs a crítica e o público a seus pés. Era notável que muitos já o tinham visto antes (“Está a ser melhor que no Lux!”, ouviu-se alguém dizer), e músicas como a excelente “Destiny” resultaram até melhor do que se esperava (é, também, um nome que deve resultar melhor em contexto diferente). Electrónica que ao vivo ganha uma aura estranhamente mais directa e quase pop, não perdendo no entanto a envolvência que se ouve em disco. O espanhol, que também estará em Paredes de Coura, esteve em excelente forma e juntou tanto os curiosos como os conhecedores numa pequena massa dançante. O grande momento veio quando, perante histerismo geral, Romy Medley-Croft e Oliver Sim, as duas vozes da banda que tinha tido a ideia de todo o evento, se juntaram ao dj em palco para interpretarem a sua remistura de “Chained”. Foi o primeiro grande momento do dia, num concerto todo ele de alto nível.
De seguida, viu-se grande parte do público a dirigir-se ao coreto para ver Jamie XX, que teve à sua espera muitos fãs da sua banda, onde se ouviu um set energético que teve como momento alto uma remistura de “Missing”, música do mais recente disco do trio. A noite, afinal de contas, era mesmo dos The XX.
Os Chromatics, no entanto, tiveram um público conhecedor à sua espera. Foi bonito ver as palmas imediatas aos primeiros segundos de canções como “Lady” (de Kill or Love, disco de 2012 que esteve em muitos tops de fim-de-ano) ou “Night Drive”, faixa-título do disco de 2007, que foi tocada logo perto do início como forma de aquecer o coração aos fãs de longa data numa altura em que o sol já se tinha posto e a temperatura começava a baixar, não fosse o Tejo estar ali tão perto; e que aquecimento foi. Numa actuação de excelência do início ao fim, foi notável ver a forma como as músicas do grupo crescem ao vivo, ainda mais dançáveis e viciantes que em disco (“Lady” é exemplo máximo disso), com a voz de Ruth Radelet tão hipnotizante e suave quanto se espera. Foram cerca de quarenta-e-cinco minutos que passaram demasiado depressa, onde os momentos mais altos foram, como seria de esperar, a excelente cover do grupo de “Running Up That Hill”, tema de Kate Bush, e a grande” I Want Your Love”, mais uma vez a lembrar o quão bom é Night Drive, disco que lançou a banda. Momentos maus ou mornos não existiram, e teve um sabor especial aquela despedida ao som de” Into the Black”, cover duma música de Neil Young que diz, e muito bem, que o rock veio para ficar. Os Chromatics usam as guitarras de outra forma, mas a alma está toda lá. Com a banda em topo de forma, a dar um concerto muito superior ao que deram em 2010 no Lux, e uma base de fãs claramente estabelecida por cá (há três anos, cancelaram uma actuação no Porto devido a pouca procura; este ano, duvida-se que o mesmo voltasse a acontecer), ficou a vontade de um regresso em nome próprio.
Antes dos The XX há ainda tempo para espreitar Pional, que dá no coreto um dj set com alguns curiosos claramente conquistados perante a alma soul do que se ouve. Antes do fim já muitos começam a rumar em direcção ao palco principal: afinal de contas, os grandes cabeças-de-cartaz estavam quase a entrar.
Não foi nem a primeira, nem a segunda, nem a terceira vez que os The XX vieram ao nosso país, e de cada vez que voltam parecem ter uma legião de fãs cada vez maior. Da Aula Magna e Casa da Música ao palco principal do Primavera Sound (tendo passado antes pelo palco secundário pelo Alive), a banda afirma-se como um dos grupos de culto do momento, com uma ascensão meteórica desde o belíssimo primeiro disco. E se no Primavera Sound e no Alive foram bons mas não memoráveis, a actuação que deram no evento que eles próprios organizaram bem corrigiu isso: perante uma plateia rendida, os The XX deram um concerto a roçar a perfeição.
Com um dos mais eficientes espectáculos de luz que este escriba viu em muito tempo (muito mais impressionante que o que apresentaram anteriormente), e com as músicas modificadas na perfeição por Jamie XX (rodeao por uma panóplia de percussão e mesas de mistura), de forma a ganharem mais impacto ao vivo (no Porto, “Crystalized” desiludiu; em Belém, foi genial), os The XX defenderam de forma profissional mas apaixonada tudo o que de bem se tem dito deles nos últimos anos, dando um concerto que faz mais que jus a uma banda que ao primeiro disco já estava a tocar em Glastonbury.
O som estava perfeito, ao alinhamento só faltou a belíssima “Stars”, e a execução tanto das músicas do primeiro disco como das de "Coexist" mostraram tanta criatividade quanto experiência de estrada. Se no Alive se mostraram iguais em disco, e se no Primavera Sound tentaram inovar com resultados por vezes mistos, em Belém a situação foi bem diferente, com cada canção a ser entregue de forma perfeita, com alguma roupagem nova (veja-se aquela versão intensa e rítmica de “Heart Skipped a Beat”), mas com a alma no sítio (oportunidade para citar Intro, talvez o grande momento do concerto, com a guitarra no máximo e um pára-arranca de arrepiar a espinha e jogo de luzes para derreter os olhos).
É verdade que o novo disco é mais do mesmo, mas mais do mesmo nem sempre é mau. Os The XX que estiveram em Lisboa neste último Domingo são uma banda que mostra ter tanto prazer como experiência de estrada, numa perfeita união entre os três membros. Jamie XX, num piso superior do palco e atrás, cria com os seus efeitos versões espantosamente efectivas das músicas que se ouvem em disco, enquanto que Oliver Sim (o mais carismático, que mais interage e mais se aproxima do público) e Romy Medley-Croft cantam numa harmonia hipnotizante (a voz de Romy, em particular, ganha ao vivo uma intensidade tímida que chega a arrepiar), com a guitarra dela a unir-se melhor que nunca ao baixo dele. “Try” abriu o concerto da melhor forma possível, e a partir daí foi sempre a subir, num alinhamento que equilibrou muito bem o primeiro e segundo disco. Os momentos de maior união plateia-banda vieram, claro, com as canções do primeiro disco, com “Crystalized”, “Infinity” (absolutamente espectacular, com final apoteótico), “VCR” , “Shelter” (grande, grande Romy) e “Islands” em destaque, mas é também impressionante o quão bem-recebidas foram “Reunion” e “Sunset”. O final, já num encore que começou com “Intro” a causar arrepios, deu-se ao som de “Angels”, momento em que muitos casais aproveitaram ora para dar o braço ora para dar um beijo. O local de Belém foi, afinal de contas, escolhido em parte por ser “muito romântico”, segundo disse Oliver Sim em entrevista. Final mais que bonito para um concerto magnífico, onde a simplicidade sonora dos The XX mostrou mais que nunca o seu poder, num deleite tão sonoro quanto visual (mais uma vez, há que falar do excelente jogo de luzes que os acompanhou). Concerto memorável, que teria sido mágico onde quer que tivesse acontecido, mas que ganhou um gosto especial por ter sido onde foi.
De seguida, viu-se uma enorme debandada, com James Murphy e Kim Ann Foxman a passarem música aos poucos resistentes que sobravam; afinal de contas, ainda não estamos no Verão, e amanhã era dia de trabalho.
O Night + Day foi uma daquelas eventos especiais, em que tudo, desde os concertos vistos ao ambiente sentido no recinto, converge para a criação de um daqueles dias que ficam na memória e que ganham um sentimento de oportunidade mais que aproveitada. Perante um preço que muitos julgavam exagerado, as bandas presentes bem que mereceram o investimento, com o local a ajudar tanto ao evento quanto se julgava (há mesmo algo de especial em ver um concerto com a Torre de Belém mesmo ali ao lado e os aviões a passarem por cima). O evento foi, resumindo, um sucesso absoluto. Se os The XX alguma vez quiserem fazer o mesmo, Lisboa cá estará mais uma vez para os receber, tanto a eles quanto aos restantes. Depois do concerto que deram e o serão que proporcionaram, o culto que possuem por cá está mais que justificado.
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Organização:Everything is New
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sábado, 20 dezembro 2014