Reportagem O Salgado Faz Anos 2018
Em que consiste exactamente o “Salgado Faz Anos”? É uma festa de anos que é um festival? Um festival que é uma festa de anos? É isso tudo e algo mais - um evento singular que já firmou o seu lugar no circuito alternativo de concertos do Porto e que este ano voltou a ter casa cheia.
Com um cartaz variado e coeso, numa espécie de montra do melhor da música portuguesa contemporânea, foram várias as actuações a decorrer ao longo de todo este emblemático espaço, criando-se um magnífico centro de exposição artística. A cada esquina, sons misturavam-se com risos, troca de ideias e um contagiante espírito de festa. A noite, aliás, era de celebração – e não só da parte do aniversariante. Comemorou-se igualmente o actual período áureo que a música portuguesa atravessa, cada vez mais uma inesgotável fonte de criatividade e partilha.
Se há cidade que se encontra bem representada no panorama nacional e que deixou também a sua marca neste evento, é Leiria. Trata-se, afinal, da terra que viu nascer Surma, alter-ego de Débora Umbelino, a primeira artista a subir ao palco principal nesta noite memorável.
Em fase de promoção ao disco de estreia “Antwerpen”, um dos lançamentos nacionais mais celebrados do ano transacto, Surma espalhou pela sala a magia da sua sonhadora pop de delicados tons electrónicos. Ainda que sintamos a falta de projecções de fundo que dêem outra vida às suas composições extremamente visuais, o encanto das músicas é suficiente para nos levar numa belíssima viagem por um mundo pacífico, poético e detentor de uma curiosa alma escandinava, ainda que tenha sido construído em terras lusas. Uma actuação deveras competente por parte de uma artista talentosa e com potencial para fazer cada vez mais e melhor.
Da mesma localidade vieram os First Breath After Coma, no último concerto da digressão de apoio ao mais recente “Drifter”. Fazendo a ponte entre o post-rock e o indie, instalaram uma cativante atmosfera onde texturas angelicais dialogaram com emotivas explosões de energia, numa sonoridade que soa sempre à banda sonora de um filme que não existe, mas que nós imaginamo-lo quando fechamos os olhos e deixamos a mente ilustrar estes sons. Um concerto recheado de alma e paixão.
Quem também triunfou nesta noite foram os bracarenses Ermo, ainda com a novidade “Lo-fi Moda” debaixo do braço. A dupla formada por António Costa e Bernardo Barbosa encontra-se cada vez mais investida na sua metamorfose artística que os viu abraçar completamente a componente electrónica da sua música. Em palco usam máscaras que lhes tapam o rosto, são produto da actual sociedade tecnocrata, dominada pelas redes sociais, que passa a ideia de comunidade mas que cria uma teia de solidão. Vemo-los, mas não os distinguimos; estão perto de nós, mas com olhos postos nos portáteis e em toda a maquinaria com o qual elaboram sons envolventes - camadas de electrónica pulsantes onde reside uma forte sensibilidade pop. Dançamos mas também sonhamos, num misto de euforia e introspecção. Um concerto simplesmente brilhante, tanto a nível musical como de atmosfera, e que deixou bem claro que estamos perante uma das mais criativas e inteligentes bandas da actualidade.
Destaque também para Scúru Fitchádu, projecto liderado por Marcus Veiga onde a atitude feroz do punk convive com os ritmos exóticos do funaná, tradição musical cabo-verdiana. Imagine-se uns Atari Teenage Riot de influências africanas e é um pouco isso que encontramos aqui, ainda que seja relativamente injusto comparar algo tão único e progressista a nomes do passado.
Seja como for, e gostemos ou não de uma sonoridade que nunca reunirá consenso devido à sua natureza invulgar, não podemos ignorar a originalidade aqui presente. Um cruzamento de diferentes mundos na tentativa de criar um só, manifesto musical das vivências do seu criador. Pesado mas festivo, rico em ideias mas sempre fiel ao espírito de “som de rua”, a primeira aparição de Scúru Fitchádu no Porto fez os presentes dançar e abanar a cabeça.
Houve muito mais a acontecer no fest do Salgado, incluindo as demonstrações de grandeza rockeira dos Stone Dead e Killimanjaro, mas a oferta era demasiada para que pudéssemos acompanhar tudo. Todavia, esse é um pouco o charme deste evento: as actividades desenrolam-se a um rimo frenético, as emoções são vividas intensamente e, no final, quando tudo acaba, ficamos imediatamente com saudades e a pensar no próximo.
Até para o ano, Salgado!
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quarta-feira, 31 janeiro 2018