Reportagem Paredes de Coura 2015
2015 revelou-se um ano histórico para Paredes de Coura, tendo o festival esgotado pela primeira vez. Quando pensamos nas razões que possam ter levado a uma elevada procura de bilhetes, apercebemo-nos que o cartaz forte e coerente não foi o único factor - Paredes de Coura é simplesmente especial. A vila, pacata e acolhedora, é o local perfeito para relaxar e abstrair-nos do stress diário dos grandes centros urbanos; além disso, o recinto, caracterizado por uma encantadora paisagem bucólica, faz com que assistir a qualquer concerto neste espaço tão belo e carismático seja uma experiência memorável.
No dia 19, que assinalou o começo oficial do evento depois de algumas actuações pela vila nos dias anteriores, o palco Vodafone começou por acolher a actuação bastante agradável dos lisboetas Gala Drop, autores de uma sonoridade verdadeiramente ecléctica, onde o dub, o afrobeat ou o rock psicadélico são apenas alguns dos ingredientes usados numa explosiva receita musical.
Seguiram-se os norte-americanos Ceremony, que protagonizaram uma actuação competente onde o post-punk da actual encarnação da banda (não nos esqueçamos que o nome do grupo é inspirado num tema de Joy Division) misturou-se com a fúria punk/hardcore dos primeiros trabalhos. A mudança radical de som pode ter sido um choque para muitos, mas a verdade é que eles continuam cheios de energia, interpretando com o mesmo sentimento um tema melancólico como “Your Life in France” e um hino de irreverência punk como “Sick”. Depois desta boa primeira impressão, esperamos voltar a revê-los brevemente.
Os Blood Red Shoes estrearam-se em Paredes de Coura no já longínquo ano de 2009, tendo gostado tanto da experiência que decidiram expressar, na sua página de Facebook, a vontade de regressar ao festival. A felicidade que a dupla de Brighton sentia por estar novamente em Coura era bem visível, o que certamente contribuiu para que o rock musculado do grupo de Laura-Mary Carter e Steven Ansell, por vezes próximo do punk mas capaz de viajar para ambientes mais melódicos, fosse tocado com imensa garra e paixão.
Quanto ao setlist, temas antigos como “I Wish I Was Someone Better” (retirado da estreia “ Box of Secrets”),“Don't Ask” ou “Colours Fade” foram intercalados com outros mais recentes, entre os quais “Speech Coma” ou “Far Away”. No final, a audiência aplaudiu o retorno triunfal do duo britânico.
Também oriundos de Inglaterra, os Slowdive, heróis do movimento shoegaze, regressaram ao nosso país depois de nos terem visitado na edição de 2014 do Primavera Sound. Tal como aconteceu na estreia em Portugal, levaram-nos novamente numa sublime viagem por um delicado universo musical. A música do quinteto de Reading reveste-se de uma intensa beleza etérea – é magnífica, poética e emocionalmente poderosa. Com um setlist maioritariamente baseado no clássico “Souvlaki”, ouvimos e deliciamo-nos com temas como “Machine Gun”, “When the Sun Hits” ou “Alison”. Para o final, ficou guardada a já habitual cover de “Golden Hair”, de Syd Barrett. Magistrais, fizeram-nos sonhar de forma apaixonada, num dos momentos mais bonitos desta edição.
A encerrar as actuações no palco principal, os norte-americanos TV on the Radio, muito aguardados pelo público português, mostraram estar em excelente forma. Em digressão de promoção ao mais recente “Seeds” – o primeiro álbum gravado após o falecimento do baixista e amigo de longa data Gerard Smith - optaram por apresentar algumas novidades, como “Could You” e “Happy Idiot”, sem esquecerem clássicos como “Wolf Like Me” ou “Staring at the Sun”. Acima de tudo, esta prestação confirmou a diversidade sonora da banda de Brooklyn, frequentemente colocada no género do art rock, e serviu para testemunharmos a preocupação dos elementos do grupo para com a audiência - alguns espectadores acenderam uma tocha e outros aderiram ao crowdsurfing – o que levou os TV on the Radio a pedirem para que tivessem cuidado. Prudentes, mas ainda assim rockeiros.
20 De Agosto
O segundo dia de Paredes de Coura foi o primeiro a ter os bilhetes diários esgotados, e sentia-se bem a dificuldade em circular pelo recinto. Ainda assim, a boa disposição manteve-se e fomos brindados com algumas actuações históricas.
Num final de tarde onde o sol ainda nos fazia companhia, o palco Vodafone FM recebeu a actuação enérgica das madrilenas Hinds, anteriormente conhecidas pelo nome Deers. Já o palco Vodafone abriu com os bracarenses peixe: avião, que acabaram por proporcionar uma actuação algo morna, ainda que não haja dúvidas em relação à qualidade das suas composições.
De volta ao palco Vodafone FM, os australianos Pond, banda onde figuram elementos dos Tame Impala, mostraram ser um dos nomes mais entusiasmantes e refrescantes do revivalismo psicadélico. Músicas como “Giant Tortoise” (que possui um riff extremamente dançável) ou “Elvis Flaming Star” são deliciosamente orelhudas, ficando imediatamente no ouvido. Ao longo dos restantes dias, diversos membros do público comentavam animadamente este concerto, o que prova que os Pond têm tudo para conquistar uma vasta legião de seguidores no nosso país… resta agora colocá-los num palco maior.
Depois de ter marcado presença numa das várias Vodafone Music Sessions, o norte-americano Steve Gunn visitou a Praia fluvial do Taboão para a decorar com o seu folk sereno e de tons psicadélicos, num concerto belo e relaxante.
Quanto aos norte-americanos White Fence, foram outra das apostas da organização no prolífero movimento psicadélico, aqui numa vertente folk. Nesta ocasião, o grupo de Tim Presley apresentou os temas de “For the Recently Found Innocent”.
A fechar o palco Vodafone FM, os dinamarqueses Iceage voltaram ao mesmo local onde tinham estado em 2013. No entanto, apesar de, em disco, construírem impressionantes esculturas punk, ao qual adicionam uma forte influência de Joy Division e uma soturna atmosfera gótica inspirada pelo legado dos Bauhaus, ao vivo não conseguem recriar esse ambiente mágico, adoptando uma postura distante e deixando muito a desejar a nível de execução. Verdade seja dita, temas como “Morals” ou “Forever” não soaram tão bem ao vivo como em estúdio. Não restam dúvidas quanto ao talento deste colectivo de Copenhaga, mas em palco continua a faltar algo.
Quem não desapontou foi Joshua Tillman, mais conhecido por Father John Misty. Autor de alguma da mais emotiva folk feita nos últimos anos e uma figura mordaz em palco, Father John Misty é muito mais do que um mero artista, revelando-se um imprevisível mas divertido homem do espectáculo – por outras palavras, um verdadeiro entertainer. Basta observarmos a maneira como se comporta para chegarmos a esta conclusão – o homem usa o smartphone de alguém para se filmar a si próprio, coloca a bandeira portuguesa ao pescoço e, resumindo, cria um teatro onde é o constante protagonista. Contudo, por trás da pele de showman provocador esconde-se uma alma criativa que nos abençoa com hinos como “I love you, Honeybear”, “Strange Encounter”, “Bored in the USA” (aquela música que Tillman diz que devemos estar sempre a ouvir na rádio, tendo sido também o momento onde a plateia acendeu os isqueiros) ou “This is Sally Hatchet”. Um dos melhores concertos do festival, protagonizado por um indivíduo excêntrico mas criativo – uma personagem dotada de um carisma peculiar.
Já todos sabemos o que esperar de um concerto de The Legendary Tigerman – Paulo Furtado a ser o animal de palco e o frontman nato do costume. Todavia, essa familiaridade é desejada, queremos que aquilo que esperamos ver realmente se concretize. Felizmente, Tigerman nunca desilude e podemos sempre contar com uma sessão divertida do blues selvagem e desenfreado que o músico aperfeiçoou ao longo da sua carreira. No decorrer desta incrível prestação, escutamos temas como “Wild Beast”, “Storm Over Paradise”, “21st Century Rock 'n'Roll” ou “These Boots Are Made For Walking” e vimos um músico veterano no seu habitat natural - o palco. È preciso dizer mais?
Por fim, o momento mais esperado para grande parte dos espectadores: o regresso dos Tame Impala. A banda de Kevin Parker encontra-se numa fase curiosa da sua carreira - estão no auge da popularidade e , ao mesmo tempo, numa óbvia mudança de identidade musical, tendo, no novo “Currents”, trocado as guitarras pelos sintetizadores e o psicadelismo dos anos 60 por um registo mais dançável. No entanto, a julgar pela recepção extremamente calorosa que a banda teve – nesta que foi a primeira data da actual digressão europeia - os fãs não pareceram minimamente incomodados, pelo menos os que se deslocaram a Paredes de Coura. Num grande espectáculo, com direito a projecções de cariz psicadélico, ouviram-se novidades como “Let It Happen” e recordações como “Elephant”, “Feels like We Only Go Backwards”, “Alter Ego” ou “Apocalypse Dreams”. Uma actuação digna do estatuto de cabeças de cartaz, que será recordada durante muito tempo.
21 De Agosto
Tal como tinha acontecido no dia anterior, o palco Vodafone de Paredes de Coura abriu ao som de talento nacional, com os X-Wife, de volta ao activo depois de uma pausa de três anos. O grupo portuense mostrou que ainda está em boa forma, interpretando temas como “ Keep on Dancing” com garra e entusiasmo.
De seguida, os Allah-las vieram de los Angeles para nos contagiar com o seu surf/garage rock simples mas eficaz, que nos fez pensar em praia e tudo o que o Verão tem de bom. Contando com projecções que ajudavam a ilustrar melhor a nossa viagem musical, o quarteto revelou-se uma das maiores preciosidades desta edição de Paredes de Coura.
No palco Vodafone FM, os destaques deste dia vão para Waxahatchee, projecto de Katie Crutchfield, acompanhada pela sua banda e em estreia no nosso país. Perante uma plateia composta, a simpática e meiga artista norte-americana explorou os meandros do folk e do rock alternativo, numa actuação onde o carácter intimista deste palco contribuiu para que se tivesse criado um ambiente adequado.
Quem também surpreendeu foram os Merchandise, que já tinham marcado presença na edição de 2013 do Primavera Sound. Com uma sonoridade bastante dinâmica e difícil de descrever, onde o post-punk, a pop ou o shoegaze coexistem de forma harmoniosa, ofereceram ao público um concerto cativante, sendo uma daquelas bandas que tem tudo para singrar nos próximos anos.
Mark Lanegan é já uma figura conhecida do público português, tendo actuado no nosso país três vezes nos últimos cinco meses. No entanto, é sempre uma honra voltar a rever este senhor, autor de uma voz áspera e assombrosa, recordando ocasionalmente a de Tom Waits. Ao vivo, Lanegan cria imediatamente um ambiente negro mas estranhamente confortável, embalando-nos na melancolia poética de músicas como “No Bells on Sunday”, “Riot In My House” ou “The Gravedigger's Song”. Houve também tempo para recordar os míticos Joy Division com “Atmosphere” – um tributo que faz todo o sentido num festival onde tantos nomes devem muita da sua inspiração à banda britânica. Um espectáculo poderoso, que provou que a chama criativa de Mark Lanegan ainda se mantém bem acesa.
Charles Bradley chegou e encantou. Pela segunda vez no nosso país, o músico norte-americano honrou a tradição soul de James Brown e derreteu corações, não só com a sua voz mágica, mas também com a paixão genuína e o registo humilde com que se dirigiu a uma audiência que não parava de dançar. Acompanhado de uma banda maravilhosa, Charles Bradley apelou ao amor e à paz entre seres humanos, e tendo em conta o ambiente pobre e perigoso onde cresceu, percebe-se bem o que o leva a pregar essa mensagem. Acima de tudo, este senhor, já com quase 67 anos, é um símbolo de vitória após uma árdua batalha com a vida, sendo que músicas como “How Long”, “You Put the Flame On It” ou “Confusion” são hinos cantados por um homem grato por tudo aquilo que tem depois de ter crescido com tão pouco. Este foi, sem dúvida alguma, um dos melhores concertos que vimos neste festival… e em 2015.
Depois da prestação fabulosa de Charles Bradley, parecia que mais ninguém ia conseguir superá-lo. Ainda assim, os The War on Drugs, de Adam Granduciel, proporcionaram um concerto bonito, não fosse “Lost in the Dream” um disco majestoso, nascido a partir da mais profunda tristeza e confusão emocional do seu compositor. Contudo, apesar de temas como “ Under the Pressure”, “Red Eyes” ou “An Ocean in Between the Waves” serem simplesmente belos, talvez resultem melhor em disco ou numa sala fechada, perdendo alguma força num festival ao ar livre.
22 De Agosto
Chegamos ao último dia de Paredes de Coura, sendo que o cansaço já se fazia sentir. Contudo, ainda havia muita coisa para ver, começando pela electrónica psicadélica dos portuenses Holy Nothing, que fizeram dançar os festivaleiros. No palco principal, Marcelo Camelo, Mallu Magalhães e Fred Ferreira, conhecidos colectivamente como Banda do Mar, terminaram a sua digressão perante uma plateia desejosa de os ver. “Velha e Louca”, de Mallu, “Dia Clarear” e “Muitos chocolates” foram algumas das músicas escutadas.
Uma das grandes surpresas deste último dia foi Natalie Prass. Nativa de Richmond, Virginia, em disco pinta uma imagem depressiva e recheada de desgostos amorosos, mas aqui mostrou-se bastante afável, brindando a audiência com uma pop delicada, de passagens folk, e cativando-nos com a sua boa disposição e temas como “Bird of Prey” ou “My Baby Don't Understand Me”.
Já tínhamos referido o papel crucial do revivalismo psicadélico nesta edição de Paredes de Coura, sendo que o palco Vodafone prosseguiu com dois nomes desse vasto universo. Primeiro, os Woods maravilharam-nos com um folk sereno, sonhador e suficientemente alucinante, interpretando músicas como “Leaves Like Glass” e
“Shepherd”.
Seguiram-se os Temples, banda britânica para quem as décadas de 60 e 70 nunca acabaram, sendo que as referências aos Beatles da fase mais experimental ou aos Led Zeppelin são mais que óbvias. No entanto, não se pense que isso é um defeito, pois a eficácia com que invocam lendas do passado é absolutamente louvável. Entre temas da estreia “Sun Structures”, como “Colours to Life” ou “The Golden Throne”, e ainda a apresentação de uma composição inédita, os Temples provaram que o hype à volta deles é plenamente justificado.
Para quem aprecia um bom rock, a sonoridade dos Fuzz com certeza que terá agradado. O concerto do grupo, que conta com o prolifero Ty Segall na bateria, atraiu uma moldura humana considerável ao palco secundário, e a julgar pela qualidade do garage rock espacial que apresentam, há motivos para tal. Um nome a manter debaixo de olho, sendo que o mesmo se pode dizer acerca da dupla norte-americana Sylvan Esso, que espalharam um enorme charme electrónico.
A sueca Lykke Li escolheu o emblemático recinto de Paredes de Coura para o seu segundo concerto de 2015 – o primeiro na Europa. Vestida de preto, tal como os panos que enfeitavam o palco, iniciou a actuação com “I never Learn” e “Sadness Is a Blessing”, criando desde logo uma atmosfera envolvente – afinal, o repertório de Li é feito de belas peças pop. Ouviu-se também “No Rest for the Wicked”, “Just Like a Dream”, “I Follow Rivers” ou mesmo uma versão de “Hold On, We 're Going Home”, de Drake.
Li, que viveu alguns anos em Portugal, ainda arriscou umas frases na nossa língua, tentando ao máximo criar empatia. No entanto, o concerto acabou por ser demasiado curto para cabeça de cartaz, ficando a sensação que um encore teria elevado a qualidade de uma prestação satisfatória.
Os Ratatat fecharam o palco principal com chave de ouro. Adicionando elaboradas projecções a uma electrónica psicadélica, pulsante, experimental e com riffs típicos do rock clássico, a banda de Brooklyn fez-nos dançar e viajar com músicas como “Loud Pipes” ou “Cream on Chrome”. Destacamos ainda o post-punk/darkwave dos The Soft Moon, já no after hours – uma despedida perfeita para um festival inesquecível.
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sexta-feira, 28 agosto 2015