Reportagem SonicBlast Moledo 2018
Foi com um estouro na boca que a oitava edição do Sonic Blast Moledo se despediu dos presentes, assustando todas as dúvidas que pudessem ter existido acerca do festival: estamos perante um dos melhores festivais dedicados ao rock em Portugal.
Mais uma vez o forte menu musical foi devorado em dois dias, onde imperou o fuzz, a distorção e as pesadas linhas de baixo, e onde não existiram propriamente grandes falhas a apontar à organização, que continua a manter o Sonic Blast pequeno em dimensão mas enorme na sua qualidade.
Mas antes de cravar os dentes no festival, o warm-up fez-se no bar mais querido do festival, o já mítico Ruivo’s. Entre cerveja atrás de cerveja, com umas bifanas à mistura, os portugueses Pledge (liderados pela Sofia Magalhães, com um passado rico em projectos musicais como Crisis ou Voidshape) entreteram as massas que encheram o bar, a par dos asturianos Acid Mess.
Porém, o festival só começou mesmo sexta-feira, com o chuto inicial a ser dado por uma cara bem familiar: Zé Roberto, dos Killimanjaro, trouxe os seus Solar Corona para um belo almoço de rock psicadélico, introduzindo novos músicos e estreando as piscinas do Sonic. Destaque também para os Astrodome, uma banda nada estranha aos ares do Sonic e que tem cada vez mais projecção nacional e internacional. O ambiente, esse, sempre irrepreensível, com a piscina a ser palco de inúmeras brincadeiras, incluindo uma espécie de mosh aquático.
E pelas 18h subiram a palco os Conan, inaugurando com muito peso o palco principal do festival. O trio de Liverpool brindou o final de tarde com o seu preparado especial de doom/stoner metal, com o seu último registo “Existential Void Guardian” do presente ano a focar as atenções. Apesar da felicidade bem patente no rosto de Jon Davis e companhia, e de um concerto com muita energia à mistura, a verdade é que a sonoridade mais pesada da banda inglesa pareceu pedir outra hora mais tardia para ser possível apreciar o seu concerto na totalidade: pelo menos, o meu humor pedia algo bem mais polido e ambiental, ao invés do barulho eficiente de Conan.
Outra banda que também pareceu sair prejudicada pelo alinhamento foram os italianos Ufomammut, um dos grandes atractivos deste cartaz, em particular após a passagem feliz pelo Reverence Valada de 2015. E o seu som transporta toda a letargia doom psicadélica que consegue acolher no seu mundo, uma espécie de banda sonora de uma bad trip que pareceu não ter fim em Moledo, com um punhado de encores e, apesar da excelente actuação, talvez um pouco longa demais. Após apresentaram temas do seu último álbum “8”, do ano passado, presentearam os seus fãs com temas anteriores durante os vários encores.
Após tanto peso sonoro e temático, foi um refresco espiritual embarcar com os Nebula estrada fora. Os norte-americanos, fundados por antigos membros dos icónicos Fu Manchu deram um concerto stoner rock despretensioso, onde os solos psicadélicos trepavam pelos acordes apressados. Energéticos, apesar da respeitável idade, Eddie Glass e seus muchachos mostraram bem como se faz, agitando bem o já considerável público presente.
Porém, um dos pontos altos da noite entrou logo a seguir: os dinamarqueses Causa Sui iniciaram uma viagem trepidante, onde a confluência de diferentes géneros musicais como jazz e rock psicadélico pintaram a atmosfera de cores vivas, fruto do excelente domínio técnico do trio nórdico. Em modo algo improvisado, a banda serpenteou pela sua extensa discografia (culpa das inúmeras “Sessions”) e, sob talvez o melhor espectáculo visual de todo o festival, deram um concerto hipnótico. Apesar de raramente actuarem ao vivo (Jonas Munk é um jovem muito atarefado musicalmente), ficamos certamente à espera de uma visita para algo mais íntimo.
E se há pouco falamos de bandas que poderiam ter actuado mais tarde, após os motores já estarem mais oleados e o sol já posto, Samsara Blues Experiment teria beneficiado e muito dessa troca no horário. Com “One with the Universe” de 2017 debaixo do braço, os alemães deram um concerto algo morno e que soube a pouco, contrastando com a experiência sensorial de Causa Sui. Apesar disso, o malabarismo de blues e música indiana e raga que distingue a sua sonoridade esteve bem latente.Porém, foi uma visita que não pareceu destoar das anteriores em território nacional, seis anos após terem estado presentes na segunda edição do Sonic Blast.
E para fechar em altos berros, outros alemães, mas estes bem mais ruidosos: apesar de serem apenas um duo, os Mantar fizeram-se ouvir bem alto, lançando os seus temas cobertos de distorção grave e muito growling para os ouvidos dos resistentes. Apesar de não reunir consensos, houve quem jurou a pé juntos ter assistido ao melhor concerto do festival na companhia da guitarra e bateria dos Mantar.
Para muitos, a cama ou tenda foram destinos certos, mas há lendas de que o DJ El Óscar ainda manteve muita gente de copo de fino na mão pelos lados do Ruivo’s.
Dia 2
O segundo dia trouxe mais música e também mais calor e menos vento: finalmente foi possível aproveitar a lindíssima praia de Moledo e dar uns mergulhos na água, curiosamente bem menos gelada do que se temia.
Contudo, estamos num festival de música, e por isso a peregrinação às piscinas foi mais uma vez obrigatória. Entre mergulhos na piscina e banhos de sol no meio de muita gente bonita e tatuada, as actuações serviram de banda sonora perfeita para uma escaldante tarde. Destacamos os noruegueses Purple Hill Witch, que espalharam muita classe saídos da sua cápsula do tempo de 1970, e da África do Sul vieram os Ruff Majik, que conquistaram os presentes com uma música dedicada ao espanhol mais perdido do Sonic Blast: Júlio, pois claro.
E para iniciar o segundo dia de festival, dificilmente a escolha poderia ter sido melhor. Os Naxatras deram um concerto agradável, alternando entre sonoridades mais atmosféricas e perdidos em solos de guitarra, como mais presos em riffs com destinos mais concretos. Competentes mas sem deslumbrar, abriam o apetite à carga musical de respeito que se avizinhava.
E que dizer quando o segundo concerto da noite é um nome como The Atomic Bitchwax ? No seu jeito bem oldschool de fazer as coisas, o trio formado em 1993 de Nova Jérsia meteu quinta e visitou mais uma vez o nosso país a mar plantado. E, como sempre, não desiludiram, com o intenso “Force Field” de 2017 a demonstrar que ainda estão aí para tocar e gravar. Mas o que ficou mais na memória dos presentes foi talvez a entrada em palco com “In the Flesh” de Pink Floyd, e a despedida com “One of these Days” da mesma banda britânica, onde Chris Kosnik brincou às adivinhas com o seu baixo. Houve também espaço para uma cover de Deep Purple e muita, muita energia e comunicação com o público: foi talvez a banda que dominou melhor essa arte por vezes perdida.
Já em plena hora de jantar, a agulha virou-se ainda mais para o stoner rock com os helénicos 1000mods, o que fez com que fossem a segunda banda grega do dia a par dos Naxatras. A provocarem muitas cãibras no pescoço, o tónico stoner doom lamacento bem ao estilo de uns Colour Haze ou Kyuss fez as delícias de quem já tinha saudades de os rever em Portugal. Por vezes a viagem reduzia de mudança, mas fez-se sempre recheada de fuzz e distorção, surpreendendo por vezes num ou outro tema mais dançável e com alguma produção electrónica, sem nunca comprometendo a matriz rock principal. A actuação começou algo lenta e terminou de forma apoteótica, já com o sol posto e bastante público para os ver a aplaudir.
Num dia que já ia bem castigador para os músculos, eis que Kadavar decidiu tornar as coisas ainda mais complicadas. A ponte estética entre o rock progressivo dos anos 70 e a modernidade é mais evidente no trio oriundo de Berlim. Ora Sabbath, ora Zepplin, a colagem não retira o valor a uma das bandas mais sonoramente consistentes do género. A sua popularidade garantiu-lhes ainda mais um par de músicas no final, banda que se estreou em Portugal precisamente na terceira edição do Sonic.
E se as apostas para concerto da noite se iam decidindo entre os três concertos anteriores, Earthless serviu de desbloqueador. Depois de em 2014 terem arrasado o Milhões de Festa, voltaram ao minho para fazer das suas, e logo com um álbum do presente ano para mostrar. Num concerto de cortar a respiração, onde a bateria simplesmente teimava em não dar descanso à guitarra e baixo, foi maioritariamente através de músicas instrumentais que a chapada sónica foi dada. Ao longo do concerto a banda foi carregando e carregando, até um final delirante e contagiante, esgotando até as reservas energéticas do mais pastilhado presente em Moledo. À semelhança de Kadavar, as influências do rock setentista era bem notória, mas a energia impetuosa dos seus temas tem ares bem contemporâneos. Apesar das opiniões serem um pouco voláteis e pessoais, Earthless encheu as medidas até transbordar o copo de riffs, e por isso foi para nós o concerto do festival.
E para despedida, os recrutados foram os portugueses The Black Wizards, a jogar em casa e vindos de vários concertos no estrangeiro, além de uma mudança no line-up (a baterista Helena Peixoto deu lugar a João Lugatte). São, pois, já uma referência no género em Portugal. Não deixa de ser curioso que a única banda portuguesa a pisar o palco principal do Sonic Blast foi também a única liderada por uma vocalista, e não se pode dizer que tenham desiludido, se bem que ficou um pouco a sensação de que a voz de Joana Brito preenche melhor espaços menos abertos. Mestres dos seus instrumentos, e mais ecléticos que maioria das bandas presentes no festival, deixaram muitas juras de amor ao festival que tão bem conhecem, concluindo uma noite que já ia muito castigadora para o corpo e mente.
Mais um ano, mais uma vitória da promotora Garboyl Lives, que continua a fazer os possíveis e impossíveis para trazer ao público português do melhor que se faz nos campos do stoner e do psicadélico. Apesar de muitos receios, as condições foram ligeiramente melhoradas, e as dores de crescimento ainda não estalaram, mas ainda há certamente espaço para melhorar, nomeadamente na oferta de restauração. Mas coisas muito, muito menores, naquele que já é há muito tempo um dos melhores festivais de rock em Portugal.
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terça-feira, 21 agosto 2018