Reportagem Vodafone Mexefest 2014
Alexandre Lopes
Previa-se o pior quando as temperaturas desceram vertiginosamente dias antes do início da quarta edição lotada do festival Vodafone Mexefest, mas nem isso chegou para impedir a presença das enchentes rumo às mais variadas salas ao longo de toda a Avenida da Liberdade.
Com um cartaz diverso, novos espaços para conhecer, o primeiro dia do festival contava com maioritariamente regressos e algumas estreias, tendo todo o destaque ido para Annie Clarke, a muy querida St. Vincent a encerrar o Coliseu neste primeiro dia ou Kindness, a tomar conta da Estação do Rossio.
Com o recém editado terceiro álbum V, os suecos jj estrearam-se em Portugal, para surpresa de muitos, com uma sala lotada e com uma fila descontrolada na porta. Para os felizes contemplados dentro da Igreja de S. Luís dos Franceses, Elin Kastlander agraciou os presentes com a sua melódica voz e um brilhante intercalar de êxitos da sua carreira ao lado de Joakim Benon. “Ecstasy”, “From África to Malaga” e a quase terminar “Things Will Never Be The Same Again” juntamente com “Dean & Me” ou “V” transformaram o concerto de uma hora numa fracção de segundos.
A nossa aventura continuou com o concerto do sudanês Sinkane, que para muitos podia passar como despercebido ou algo a haver caso não houvesse alternativa. Ainda que a Estação Ferroviária do Rossio (conhecida no festival como Estação Vodafone FM) não tenha enchido para receber o músico e a sua banda, a verdade é que estes não deixaram o crédito por mãos alheias ao debitarem uma verdadeira lição de funk. A mistura da electrónica, funk, soul, pop, rock e jazz, com os sons quentes africanos sempre presentes, fizeram com que o artista tenha sido recebido com algum entusiasmo pela plateia. E isso notava-se principalmente em quem estava ali e não conhecia o sudanês.
Tão diverso quanto possível (a riqueza musical é tanta que, entre músicas, parece que ouvimos alguém diferente), Sinkane lá foi apresentado, entre outros, os temas do seu quinto e mais recente álbum Mean Love, casos de “How We Be” (que fechou o concerto), “New Name” ou “Young Trouble”, além de ter ido recuperar temas a álbuns mais antigos. Frio? Aqui não houve disso, o balançar do corpo não o permitiu.
Merrill Garbus é irreverente e já se tinha percebido isso na sua passagem por Paredes de Coura e com WHOKILL na mala. Com Nikki Nakk, editado no presente ano, a história é diferente. De artista a solo em palco, Garbus transformou um concerto ao vivo num verdadeiro espetáculo de luzes e euforia. Aliada a uma fluente orquestra de percussão, performers que deambulam em palco, balançando o alinhamento entre os dois últimos álbuns, a fórmula apesar de repetitiva não cansa.
Muito pelo contrário: fascina e faz-nos querer mais e aguardar por mais surpresas. Trocas de posições, instrumentos loucos, coros tribais e exaustiva percussão fazem tUnE-yArDs um projecto único e a mestria de Garbus em articular elementos musicais aparentemente disformes é sinal de talento. A prova foi dada perante um Coliseu dos Recreios que encheu numa questão de segundos.
Havia muita expetativa para ver os King Gizzard and The Lizard Wizard na Garagem Epal, onde não cabe muita gente. E a expectativa foi cumprida – outro dos melhores concertos deste Vodafone Mexefest.
Sem serem brilhantes, os sete australianos mostraram que respiram rock psicadélico ao mesmo tempo que dedilham riffs esquizofrénicos. Podem parecer imaturos (não é habitual uma banda gravar cinco álbuns em dois anos), mas o rock quente e excitante que varia entre Foxygen, Ty Segall e Unknown Mortal Orchestra assenta bem no ouvido. Vozes abafadas, guitarras auspiciosas, duas baterias e muitos mosh e crowdsurfing foram os ingredientes necessários para um dos concertos mais agressivos deste festival de quase inverno. Uma explosão de saltos, uma explosão de rock n’ roll. Não nos admiraríamos se estes King Gizzard and The Lizard Wizard regressassem em breve ao nosso país.
Já os Kindness deram um dos concertos da noite. Liderados por Adam Bainbridge, a amálgama de sons do grupo tinha tudo para não funcionar. Mas funciona, e bem. Ao vivo, a festa é imensa – além de divertidos, também interagem com o público. Bainbridge, principalmente, sabe como conduzir um espetáculo.
Ouvir Kindness é, como já referimos, ouvir uma data de misturas – do synth-pop ao acid-jazz – e sermos transportados para os anos 80. É dançar até cair para o lado, é procurar o companheiro certo para executar uns movimentos mais festivos. Quem reparar em Bainbridge (muito irrequieto, salta para cima das colunas, desce a rampa que vai dar ao Rossio) vê que está ali alguém que se afigura como um mestre-de-cerimónias, porém, deve muito às vozes femininas que o ajudam e que dão uma certa frescura ao próprio som da banda.
É verdade que há, tal como acontece com os Sinkane, muito funk para ser escutado. Mas também há espaço para uma cover de “I Wanna Dance With Somebody”, de Whitney Houston, há espaço para brincar, há espaço para agarrar num smartphone de um fã e filmar o concerto… No fim, alguém ao nosso lado dizia: “epa, isto foi brilhante!”.
Apenas passaram uns quantos meses desde a última vez que Annie Clarke esteve em frente aos portugueses e, para sermos honestos, St. Vincent nunca vem em demasia. A apresentar o primeiro álbum editado depois do seu projecto com David Byrne, o mentor dos Talking Heads, Clarke já pertence ao conjunto de mulheres que mudaram a música e já não é necessário dar provas disso.
St. Vincent fala por si: Um muy nobre Coliseu cheio para receber o primeiro cabeça-de-cartaz que nada teme mas que também revela uma faceta humilde e que incluí na sua arte dois ingredientes importantes: amor e dedicação. Centrando-se maioritariamente no álbum deste ano, Annie Clarke ainda revisitou “Marrow” e “Actor out of Work” de Actor, bem como Strange Mercy onde não faltaram as icónicas “Cruel” ou “Cheerleader”.
Já no encore, depois de muita conversa, partilha de experiências com o seu público e de tocar no chão, St. Vincent ataca com a grosseira, não menos incrível, “Krokodil” e “Your Lips Are Red” de Marry Me, o álbum de estreia. Provas para quê? Não são necessárias.
Já no final da noite demos de caras com o projeto Stereossauro, considerado um mestre na cena do scratch e turntables. Apesar de não ter muito público, o português não se deixou ficar indignado (até porque St. Vincent tomava o Coliseu de assalto) e contou com a ajuda dos Megadrive em palco. Já sozinho, puxou dos galões e deu um set bastante consistente, mas não contagiante, onde ainda conseguimos escutar “Ó Gente da Minha Terra”, de Mariza.
Para o segundo-dia, o Vodafone Mexefest fervilhava com reencontros: o regresso de Perfume Genius e Sharon Van Etten, bem como o acarinhado sueco Jay-Jay Johanson que veio preencher o lugar dos conterrâneos escandinavos I Break Horses.
Estreou-se no Lux em 2012 e foi aí que começou a relação de amor com Lisboa e Portugal em geral. Quatro álbuns editados e uma vida amorosa complicada que lhe serviu de inspiração para o seu trabalho, Sharon Van Etten é , sem dúvida, um dos nomes mais relevantes da música independente actual. Are We There editado em Maio serviu para o reencontro da americana com Lisboa. “Taking Chances” o primeiro single do novo registo foi imediatamente recebido com gritos de satisfação, mas mais satisfação teve Van Etten ao partilhar o seu humor constrangedor mas ainda assim adorável. Desde as clássicas piadas de “I wanna have your babies”, Sharon meditou sobre a questão que seria biologicamente mais fácil se fosse ela a tê-los. O concerto prossegue e centra-se maioritariamente nas novas canções. Porém, “Give Out” de Tramp, motivo da sua primeira visita a terras lusas, causou a maior congregação de vozes no Coliseu dos Recreios. Prosseguindo com o à vontade tímido de Sharon Van Etten, o seu amor pelo país é evidente e é notório que o seu público a compreende. Se houvesse tempo para mais, teríamos ficado mais umas boas horas a absorver o que a cantora nova-iorquina tinha para oferecer. Não sendo possível, “Everytime The Sun Comes Up”, faixa que termina Are We There coloca um sorriso nas faces dos presentes e em uníssono encerra a hora de concerto que mais pareceram segundos, fazendo deste um dos momentos mais enriquecedores de todo o Vodafone Mexefest.
Complicado era a tarefa que os Cloud Nothings tinham em mãos ao lhes atribuírem o Ateneu Comercial de Lisboa como sala de concerto. Um antigo ginásio com má acústica e volumes altos geralmente não combinam e assim se confirmou imediatamente após a tomada do palco pela banda de Dylan Baldi, proveniente de Cleveland, Ohio. Depois da sua monumental passagem pelo NOS Primavera Sound, a segunda visita a terras portuguesas ficou muito longe da monumentalidade proporcionada pelos americanos no Palco Pitchfork no passado mês de Junho. Here and Nowhere Else, apesar de editado este ano, foi absorvido pelo inigualável Attack on Memory de 2012.
Mike Hadreas supera-se de álbum para álbum e o resultado é ser o nome mais aguardado do Vodafone Mexefest. A fila já era vasta e as portas ainda não tinham sido abertas para receber o cantautor de Seattle, Washington. De uma fragilidade abismal em Learning, o álbum que o lançou para bocas do mundo, Hadreas tornou-se numa figura de culto, um herói de muitos e um modelo a seguir. Too Bright evidencia o seu lado mais adulto e glamoroso, sem nunca perder o toque e a identidade que o tornou quem é na indústria. Canções curtas mas conspurcadas de emoção e vida fazem as delícias do ouvintes. “My Body” abre o momento solene vivido no Cinema S. Jorge ao longo de uma hora. “Dark Parts” de Put Your Back N2 It revela a vulnerabilidade de Hadreas, que se perlonga com “Lookout, Lookout”. É, no entanto, com “Grid” que Perfume Genius saiu da sua zona de conforto e revela a nova faceta que deve ser perpetuada. Todas as canções são únicas por si mesmas mas quando compiladas num alinhamento, a violência da sua essência é notória. “Hood”, o single do segundo álbum que contou com a participação do falecido actor pornográfico Arpad Miklos, abre o desfecho da noite, que culmina com “Queen”, logo após a inédita “Rusty Chains”. No entanto, é preciso frisar que, apesar de ter sido um concerto com princípio, meio, fim e ter sido extremamente completo, ficou um pouco aquém das expectativas pela forma como foi dado: com alguma indiferença.
O concerto dos Palma Violets foi daqueles que poderiam muito bem rebentar com os nossos tímpanos e levar-nos a ficar surdos. A atuação, que teve lugar na estação Vodafone FM, pautou-se pelo exagerado volume debitado pelo sistema de som daquele espaço. Não obstante, muitos foram aqueles que encheram o espaço para ouvir as canções do belíssimo álbum de estreia 180.
E desengane-se quem pensava que iria ouvir mais uma qualquer banda de indie rock. Não. Os Palma Violets também doseiam rock psicadélico com garage rock, dando-lhes muita agressividade e fúria. Apesar de serem miúdos, já atuam como gente grande. Em palco são quatro: Samuel Fryer na voz e guitarra, Alexander Jesson na voz e baixo, Jeffrey Mayhew nos teclados e William Doyle na bateria. Além de temas novos, pudemos escutar cantigas como “Tom The Drum”, “Take Me Home” ou a badalada “Best Of Friends”.
Um dos concertos mais esperados na noite era precisamente o de Wild Beasts, meses depois de terem atuado num outro festival português. E a banda, ainda que não tenha sido perfeita, deu um concerto bastante competente e que mostrou a ligação que possuía com os fãs portugueses.
Como era esperado, o Coliseu esteve praticamente cheio para receber os ingleses. E a verdade é que eles continuam a crescer a cada disco que lançam. Isso nota-se com a euforia com que temas novos como “Mecca” (começou com má qualidade saída das colunas de som), “Wanderlust” (guardado para o encore), “Sweet Spot” ou “A Simple Beautiful Truth”, todos eles saídos do mais recente álbum Present Tense.
Liderados por Hayden Thorpe, que não cansou de elogiar os portugueses enquanto bebia o belo do copo de vinho, os Wild Beasts tendem a cair um pouco no problema da monotonia, ao tocarem temas que, por vezes, parecem muito semelhantes aos restantes. Mas não foi isso que demoveu os milhares de fãs que se encontravam pela mítica sala Lisboeta. Um concerto de cerca de uma hora e meia que passou pela discografia do grupo e que, certamente, não deixou ninguém descontente. Não sendo explosivos, eles são mestres no seu habitat natural.
Contas feitas, dois dias de puro luxo musical. Um festival de quase Inverno que só vem a crescer ano após ano (esta edição recebeu 14 mil visitantes, uma evolução face aos 12 mil visitantes de 2013) e que tende a receber convidados de luxo. O único senão é a constante dificuldade em gerir horários. Existem demasiados concertos sobrepostos e uma clara discrepância na qualidade das bandas que atuam em cada dia. Um ponto a rever pela organização na edição de 2015.
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Organização:Música no Coração
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sábado, 20 dezembro 2014