Reportagem Vodafone Paredes de Coura 2018
É, sem sombra de dúvidas, um dos mais bonitos festivais a acontecer no nosso Portugal. Alienado à belíssima vista paradisíaca, oferecida pela Natureza, de Paredes de Coura, ouve-se o melhor que se tem feito no panorama musical da atualidade, tanto a nível internacional como por cá; apelidam-no como o habitat natural da música, e é difícil contra-argumentar.
Para a sua 26ª edição, o Vodafone Paredes de Coura revelou-se uma caixinha de surpresas a que bons concertos diz respeito, e o primeiro surgiu ainda em horário diurno, ao som de Marlon Williams.
19 mil e 798 km é a distância que separa Christchurch, na Nova Zelândia, de Paredes de Coura. Apesar da longevidade da viagem, a fervorosa plateia que acolheu Marlon Williams, naquela que foi a sua estreia em Portugal, certamente convenceu o artista de que todos esses quilómetros valeram a pena.
À boleia de Make Way For Love, disco assombrado pelo fantasma da agora ex-namorada, Williams surpreendeu pela destreza em mover-se entre os territórios do folk, do soul, do country e até do indie, levando a cabo uma sonoridade cujos consideráveis níveis de peculiaridade originam um apreço quase instantâneo pela música de Marlon Williams. Aliás, quem já passou por um, ou atravessa de momento, um desgosto amoroso oriundo do término de uma relação, facilmente se identifica nas canções do neozelandês, como “Come To Me”, “Can I Call You?” e “Nobody Gets What They Want Anymore”.
Entre “Party Boy” e “Vampire Again” ou “Dark Child” e “Love Is a Terrible Thing”, Marlon Williams conseguiu demonstrar o quão prolífero consegue ser enquanto músico, agradando tando a gregos e troianos. Agradecendo a calorosa receção do público português – “é a minha primeira vez em Portugal e estou a adorar, obrigado!” – não se poderia ter pedido um melhor arranque para o Vodafone Paredes de Coura, ou como Marlon disse num português arranhado, “Paradise de Coura”.
Regressando da Nova Zelândia para o nosso Portugal, os Linda Martini foram a banda que se seguiu no cardápio. Na sua quarta passagem pelo festival do Norte, um dos sítios mais especiais para a banda e, segundo Hélio Morais, “onde sempre fomos muito felizes”, a banda lisboeta viu-se finalmente promovida a horário nobre e em tudo justificou ser merecedora desta promoção.
Arrancando ao som do primeiro single do seu mais recente e homónimo disco, “Gravidade”, que seria de seguida acompanhado por “Caretano” e “Boca de Sal”, o expectável cenário de agressividade efusiva num concerto de Linda Martini teimou em querer dar o ar de sua graça, com o (fiel) público do quarteto alternativo a optar antes por se cingir de cingir a um cenário de contemplação, embora os refrães de memória fáceis fossem entoados de forma bem ruidosa, quase ofuscando André Henriques.
Todavia, à entrada de temas como “Unicórnio de Sta. Engrácia”, “Belarmino” e “Panteão”, o ambiente muda drasticamente para um serão de mosh em abundância, com uns quantos corajosos a aventurarem-se nas alturas através de crowdsurf; o caos estava finalmente instalado, e dificilmente conseguiria ser contido.
Em noite onde se percorreu os clássicos sem esquecer os temas fortes do mais recente Linda Martini, a festa terminaria ao som da fatídica “Cem Metros Sereia” e, surgindo em tom de surpresa, resgatou-se “O Amor É Não Haver Polícia” para terminar o concerto em chave de ouro. Visivelmente emocionados e debaixo de uma mais do que merecedora chuva de palmas, os Linda Martini foram, novamente, os heróis que levantaram o esplendor de Portugal.
Se os Linda Martini ameaçaram abrir a porta da ordem do caos, então os King Gizzard & The Lizard Wizard arrombaram-na por completo. Depois do concerto ‘bomba’ em 2016, o septeto australiano regressou a Paredes de Coura para repetir a dose, deixando o público num alucinante estado de apoptose.
Em 2016, os King Gizzard & The Lizard Wizard trouxeram na bagagem Nonagon Infinity, estrondoso disco que meteu a banda nas bocas do mundo como uma das mais talentosas e promissoras bandas psicadélicas do momento. A dita premissa concretizou-se em 2017 quando os australianos conseguiram a proeza de lançar cinco (!) discos num único ano, todos eles diferentes entre si.
Com uma vasta biblioteca de material novo para mostrar, a que se juntam êxitos do passado, os King Gizzard & The Lizard Wizard como que separaram a sua atuação por ‘atos’, para que cada um dos seus mais recentes discos tivesse direito ao devido momento de estrelato. Esta decisão levou a que o concerto tanto tivesse momentos a emprestar do jazz, dos blues, rock disfarçado de metal e, à entrada de “Rattlesnake”, psicadelismo oriundo de outra dimensão que originou a mosh e crowdsurfing intermináveis.
De adrenalina no seu estado mais puro, muito por culpa das galopantes baterias siamesas que ecoam sempre com imenso estrondo, a batalha campal iniciada pelo septeto australiano nunca revelou indícios de calma ou o desejo em abrandar, mas o público de Paredes de Coura nem desejava tal coisa. Entre sapatos, camisolas e copos reutilizáveis pelo ar, ao qual só não se juntou uma nuvem de poeira graças à inclusão de um piso de relva sintética para este ano, o auge do concerto viria no fim ao som das reminiscências de Nonagon Infinity: “Robot Stop”, “Gamma Knife” e “People-Vultures”.
Antes da noite inicial do Vodafone Paredes de Coura fechar portas, houve ainda tempo para mais uma estreia em palcos nacionais: falamos de The Blaze, dupla francesa que acata o estatuto de serem uma das bandas sensação da electrónica neste momento. Aliás, a expectativa perante este projeto dos irmãos Alric é tanto que, mesmo sem nenhum disco de estreia lançado, encabeçaram a primeira noite do festival.
Actuando dentro de um pequeno cubículo, cujas portas funcionavam como dois televisores gigantes onde eram exibidas pequenas curtas que davam vida às batidas frenéticas da dupla, os The Blaze instauraram um clima de festa pelo anfiteatro do festival, com o público a não demorar muito até deixar-se levar pelos ritmos contagiantes e dançáveis deste projeto.
Com um jogo de luzes hipnotizante, os The Blaze levantaram o véu perante as supressas que o disco de estreia Dancehall reserva, aumentado a expectativa para os conhecedores da banda e desencadeando curiosidade a todos os restante que ficaram a conhecer o projeto naquela noite. Contudo, temas como “She”, “Territory”, “Heaven” e “Juvenile” uniram essas duas partes numa festa singela e que colocou, em tons bem festivos, ponto final no arranque de mais uma edição do Vodafone Paredes de Coura.
Dia 2
Desde o começo que o Festival Paredes de Coura se orgulha de apresentar um vasto leque de artistas no cartaz capaz de agradar a tudo e a todos: ‘ecletismo’ é palavra de ordem e sempre será. Para este segundo dia do Vodafone Paredes de Coura, diversidade era o que não faltava no palco principal, com tanto o punk como o rock ‘n’roll, folk e electrónica a estarem representados.
E foi mesmo na violência do punk que o dia começou, ao som dos londrinos Shame. Apesar dos banhos de sol pelo Taboão terem prendido uma quantidade significativa de festivaleiros, os poucos que preenchiam o anfiteatro do palco Vodafone viram um dos concertos mais enérgicos da edição deste ano de Paredes de Coura.
Logo de início, Charlie Steen revelava um certo desejo pela desordem; “seguranças, deixem-nos fazer todo o mosh e crowdsurf que quiserem; é o nosso concerto, nós damos permissão” ou “venham para mais perto de nós” foram algumas das tiradas do vocalista.
Mesmo contando com um único cartão-de-visita que dá pelo nome de Songs of Praise, lançado em Janeiro último, os londrinos deram um concerto coeso e em sentido de crescendo, com a afluência de pública a aumentar de tema para tema. Originando uma intensa descarga de euforia e energia – “One Rizla” - bem contrabalançados com uma fúria e loucura saudáveis – “Dust On Trial” -, os Shame fizeram jus à irreverência expectável do punk, interpretada na perfeição por Charlie Steen, que passou quase mais tempo no fosso e entre o público do que em cima do palco em si.
De seguida, a agressividade sonora de Shame deu lugar ao indie pop colorido de Japanese Breakfast, naquela que foi a estreia de Michelle Zauner em Portugal.
É quase paradoxal a forma como os discos de Zauner acatam uma mensagem tão intimista e sombria – morte da mãe em Psychopomp e as inseguranças da artista em Soft Sounds from Another Planet – quando em palco são das sonoridades mais vivaças e cativantes que nos vem à memória, assim como de um Palco Vodafone.FM a rebentar pelas costuras.
Apesar do charme jovial de Zauner, a enquadrar-se na perfeição no perfil de ‘girl next door’, seria quase criminoso não aplaudir a excelente banda de apoio que acompanhou a norte-americana com descendência coreana, com a química entre todos a ser mais do que notória e o ar travesso conjunto a demonstrar que a banda se estava a divertir tanto como o próprio público.
Entre “In Heaven”, “Heft”, “Till Death” e culminando numa versão de “Dreams” dos The Cranberries, com esta última a ter direito a Michelle Zauner a cantar junto das grades; “foi o meu primeiro concerto em Portugal. E que grande primeiro concerto!”, exclamou Michelle perto do fim, meio encavada. Certamente que ninguém argumentou contra.
Tal como acontecera em 2015, The Legendary Tigerman, que assina como Paulo Furtado no C.C., perguntou ao público de Paredes de Coura se este queria um serão de rock ‘n’ roll. Tal como acontecera em 2015, a resposta do público em tudo foi afirmativa, com o português a assinar uma atuação eletrizante.
Em noite de ode ao rock’n’roll, Paulo Furtado soltou o seu tigre interino, que se fez acompanhar por outras três feras - Paulo Segadães (bateria), Filipe Rocha (baixo) e João Cabrita (saxofone) – igualmente sedentos por gerar balbúrdia. A cumplicidade entre este grupo de predadores é invejável, assim como a perfeita sintonia que existe em torno dos seus instrumentos.
Abrindo ao som de “Black Hole”, julgava-se que a noite seria dedicada a Misfit, sexto longa-duração, ainda na fresca, mas com as exceções de “Fix of Rock ‘n’ Roll” e “Motorcycle Boy”, pouco se ouviu do novo disco de Paulo Furtado, com o concerto a consistir num best-of da carreira de Paulo Furtado, ou não fosse The Legendary Tigerman um dos projetos portugueses com mais sucesso dos últimos tempos.
Com “These Boots Are Made For Walking” a arrancar as primeiras cantorias da noite e com “Naked Blues” (quase) a obrigar que se bata pé, Paulo Furtado foi um respeitável entertainer, ora fosse para provocar o público com as suas hilariantes one liners certeiras ou para se queixar de problemas técnicos que, eventualmente, deixaram de ter importância; “hoje estou com tanto amor por vocês que quero que o feedback se foda”.
Esse dito amor nutrido pelo público de Paredes de Coura foi levado à letra já no final do concerto, ao som da já tradicional “Twenty First Century Rock’n’Roll”, quando tanto Paulo Furtado como a sua guitarra saltam juntos para o meio do público para nadar pelo meio dos braços do público que, a par de The Legendary Tigerman, cantavam euforicamente “ROCK AND ROLL, ROCK AND ROLL” a plenos pulmões.
Passada a tempestade rockeira de Paulo Furtado, veio a calma e a bonança, personificadas pelos Fleet Foxes. Depois de uma árdua batalha num aeroporto em Amesterdão, que (quase) ameaçou a presença da banda no Vodafone Paredes de Coura, Robin Pecknold e companhia conseguiram contornar a situação e lá que deram o ar de sua graça pelo habitat natural da música, mas mentiríamos se não disséssemos que não se sentiu um sabor agridoce quando a música cessou.
Uma grande parte de nós quer atribuir culpa ao cansaço para tal desaire, visto que o alinhamento dos Fleet Foxes foi rico em pérolas dos primórdios da banda, quando Father John Misty ainda era o baterista; ouvir-se “White Winter Hymnal” logo no início foi uma jogada de mestre. Todavia, a tarefa de prender o público não totalmente devoto a Fleet Foxes revelou-se uma tarefa árdua que nunca foi totalmente superada, apesar da indie folk da banda encaixar que nem uma luva num festival como o de Paredes de Coura.
Transpor todos os ínfimos detalhes, que elevam os temas de Fleet Foxes a um patamar onde jazem algumas das mais bonitas canções deste milénio, para palco é tarefa árdua, é certo, mas o sexteto americano passou com distinção nesse teste, conseguindo manter tanto a pureza como o mistério que paira sobre as suas obras de forma imaculada.
Com a melancolia ternurenta de “Blue Ridge Mountains”, “Fool’s Errand” e a mui aplaudida “Mykonos” a desafiarem um público que apenas foi demonstrando interesse aos poucos, ficou-se com a impressão que algo faltou para que a plena absorção da beleza das canções dos Fleet Foxes fosse alcançada. Contudo, “Helpleness Blues” viria a dar como terminado o concerto da melhor forma possível, especialmente para um sortudo fã que teve direito ao casaco de Peckhold como recordação.
Para acabar a noite com estrondo, seguiram-se os Jungle. O septeto britânico teve todo o anfiteatro do Palco Vodafone aos seus pés, comandados pela felicidade para que dançassem livres de preconceitos na pista de dança imposta pelos Jungle.
Misturando soul e funk a uma electrónica com nuances de house, o que por si gera um clima festivo, os Jungle não se fizeram de cerimónias em incendiar as imediações do Taboão com a sua sonoridade contagiante e funky, com “Platoon” a ser o primeiro indício de uma vaga de calor que se manteria sempre quente ao longo de uma hora.
Beneficiando de um dos melhores sons de todos os concertos desta edição de Paredes de Coura – todas as meticulosas mas essenciais batidas da banda ouviram-se de forma cristalina – os Jungle mostraram o porquê do seu homónimo disco de estreia, lançado em 2014, ter sido um dos mais empolgantes desta década, com “Julia”, “Accelerate” e “Time” a servirem de bons exemplos.
Com o público eufórico e na sua mão do início ao fim, os Jungle parabeneziram-no com alguns avanços do seu segundo disco de originais, de nome For Ever e a ser lançado já em Setembro, como foram os casos “Casio”, “Beat 54 (All Good Now)” e “Heavy, California”, deixando a expectativa em altas para o regresso dos londrinos ao nosso país, com Lisboa a acolhê-los em Novembro, em âmbito do Super Bock em Stock.
Terminando com a estrondosa “Busy Earnin’”, a festa dos Jungle deu-se ali como terminada, mas os mais resistentes dar-lhe-iam continuação no after-hours. Já nós, cessámos fogo e de sorriso rasgado fomos para o campismo pois a festa continuaria amanhã com Skepta e Slowdive como principais focos de interesse.
Dia 3
Em ano onde a aposta de hip-hop nos festivais portugueses atingiu valores máximos, também o Vodafone Paredes de Coura seguiu esta nova tendência, com Skepta a encabeçar o terceiro dia do festival. Todavia, o 17 de Agosto não se fez apenas das rimas do londrino, com um vasto cardápio de excelentes concertos a ecoarem no habitat natural da música.
O primeiro deu-se no Palco Vodafone.FM, ao som de Frankie Cosmos. De registo indie pop, com um toque de folk e dream pop aqui e acolá, a americana Greta Kline estreou-se finalmente em Portugal, enfeitiçando um público que se manifestava em boa quantidade.
Oscilando entre sintetizadores capazes de nos transportar para os nossos sonhos mais tranquilizantes, e de guitarras que nos remetem para o sabor agridoce da realidade, Greta Kline apresentou as mais polidas pérolas do seu recente Vessel, lançado este ano e que foi acolhido de braços abertos pela crítica. De braços abertos foi também a forma como o público de Paredes de Coura a acolheu, com a cantautora a salientar que o festival era “o único no mundo em que conseguimos tocar três canções seguidas com vocês a ouvi-las de forma silenciosa e atenta”.
Após um longo período de cinco anos sem pisar palcos portugueses, os DIIV deram uma perninha na sua tournée para dar um concerto exclusivo em terras europeias, e o Vodafone Paredes de Coura foi o anfitrião de serviço.
Ainda à boleia de Is The Is Are, lançado em 2016 depois de um tumultuoso processo de gravação marcado por drogas e afins, o projeto liderado por um quase irreconhecível Zachary Cole Smith enfrentou uma ou outra lomba logo de início, em “Is The Is Are”, com uma corda a romper-se a meio e a levar uma quantidade considerável de tempo a ser trocada. Foi aqui que surgiu o grande calcanhar de Aquiles, e único entrave, do concerto dos DIIV: os extensos momentos mortos entre canções.
A partilha de histórias, as piadas entre a banda, a leitura de cartazes e dos sponsors do festival, o louvar à Super/Ultra Bock foram alguns dos momentos que deixaram a plateia com um sorriso nos lábios, mas não havia a necessidade de massacrar o assunto durante tanto tempo. De certo modo, os DIIV quase transpareceram um nervosinho miudinho em lidar com tanto público e com um timeslot relativamente extenso, pensamento este estranho de ser equacionado ou não tivesse a banda cerca de trinta temas e onde acabariam por tocar somente dez dos mesmos.
Daquilo que se ouviu, é difícil de argumentar contra a qualidade dos DIIV enquanto banda, ou não tivessem repescado o shoegaze para o século XXI e injetarem-lhe uma boa dose de dream pop de forma a produzirem uma das sonoridades mais singelas e refrescantes dos últimos tempos. Com projeções VHS de tournées anteriores a exibirem imagens de estradas, “Follow”, “Dopamine” e “Under The Sun” acabariam mesmo por se tornarem autênticas viagens pelo limbo que separa o real do irreal.
“Doused”, o grande êxito da banda e que ironicamente foi dedicada à Vodafone – foi banda sonora de um anúncio publicitário assinado por uma das marcas da concorrência – foi tocada bem mais precoce do que se imaginava, o que só por si demonstra a força do alinhamento dos DIIV e que contou, também, com um tema inédito a ser tocado pela primeira vez ao vivo, canção esta que transpira a essência da banda Nova Iorque por todos os lados.
“Este é sem dúvida o melhor festival do mundo”. Começar um concerto logo com uma tirada destas é meio caminho andado para a coisa correr bem e ser-se recebido em apoptose pelo público. Foi assim que se fez o início dos …And You Will Know Us By The Trail of The Dead – chamar-lhes-emos Trail of the Dead de agora em diante.
Com adrenalina e pujança para dar e vender, a banda oriunda do Texas revelou-se um furioso tornado, pronto para sementar destruição pelo caminho. Armados com um post-hardcore abismal, o palco Vodafone.FM tornou-se numa real batalha campal, com diversos mosh violentos a acontecerem em simultâneo, para delírio dos Trail of the Dead.
Em noite de último concerto da tournée, sentia-se o gosto especial dos Trail of the Dead em terminar a jornada em Paredes de Coura, festival que os acolhera em 2011 e onde foram muitos felizes na altura, como fizeram questão de frisar. Como tal, e por saberem que estavam ‘em casa’, o cansaço dos Trail of the Dead foi inexistente, com a banda a soar mais fresca do que nunca e a colocar uma intensidade tão voraz nos seus temas que mais parecia terem começado a tournée naquele preciso momento. É tão bom quando os próprios artistas adoram o sítio onde estão a tocar, não é?
Quem também voltou a reencontrar a felicidade em Paredes de Coura foram os Slowdive. Depois de terem assinado um dos concertos mais bonitos na edição de 2015, a mítica banda de shoegaze repetiu a dose, desta vez com o seu primeiro disco de originais em 22 (!) anos, o homónimo Slowdive.
Ao som do novo disco, com “Somo” a não só dar o pontapé de saída mas também a demonstrar que a banda em nada perdeu o toque em criar canções capazes de nos guiar pelas estrelas – e em Paredes de Coura, o céu límpido permite-nos ver centenas. É incrível como uma banda que enfrentou um hiatus tão duradouro, consiga soar tão rejuvenescida nesta segunda vida, mantendo a pureza dos primórdios mas polida com o detalhe de quem é músico já faz tempo. O resultado? O expoente máximo de magia.
Apesar de tocarem para uma plateia em que muitos dos presentes ainda dormiam dentro de um berço quando os Slowdive apareceram no início da década de 90, muitos foram aqueles que tiveram a sua frequência cardíaca sincronizada com as doces melodias da banda, como sucedeu em “Crazy For You” e “Souvlaki Space Station”. Por mais angelical e irradiante de amor que fosse a voz de Rachel Goswell, a distorção em torno do microfone da própria levava a que o principal foco estivesse na harmonia absoluta da banda.
No meio de um jogo de luzes capaz de imergir o público nas canções, como as recentes “Star Roving” e “Sugar For The Pill”, os Slowdive convidaram todo o anfiteatro de Paredes de Coura a fazer parte de uma constelação cujo brilho da luz emancipada conseguiria ser vista a milhões de quilómetros de distância, como o tamanho do apreço por “Allison” e “When The Sun Hits” nutrido pelos devotos da banda. Em suma, foi maravilhoso.
Antes de subir ao palco, Skepta era uma incógnita: ou ia corria muito bem, ou muito mal. De facto, o anfiteatro estava mais vazio do que nas noites anteriores, mas nada por ali além. Por outro lado, em frente das grades, era difícil de encontrar um único buraquinho de espaço. A antecipação e as dúvidas perante o primeiro cabeça de cartaz de hip-hop em Paredes de Coura eram muitas, mas rapidamente se dissiparam: Skepta veio, chegou e conquistou.
Skepta chefia a actual armada do grime, estilo primo do hip-hop nascido nas ruas de Londres e ao qual é atribuído uma forte conotação de agressividade e crítica social. E foi isso mesmo que Skepta foi: uma alma endiabrada que não se conteve até deixar os níveis de violência do (outrora) pacato público de Paredes de Coura ao rubro, com as suas rimas a funcionarem como um rastilho de explosivos.
Sozinho em palco, com a exceção do DJ de serviço a disparar batidas, o rapper londrino foi grande em tamanho e gigante em entrega, preenchendo o Palco Vodafone só por si. A energia contagiante de Skepta era enorme, o que despoletou uma resposta em igual nível por parte do público, com o mosh caótico que se vivia nas primeiras filas a ameaçar que se levantasse pó pela primeira vez este ano. Contudo, essa euforia desmedida acabaria por dar lugar a estupidez quando alguém achou boa ideia atirar uma lanterna contra o artista; “pessoal, eu percebo que se estejam a divertir, mas estas merdas não podem acontecer. Se continuarem com isto, eu vou-me embora e o concerto acaba aqui, perceberam?” ameaçou o rapper, embora tenha sido sol de pouca dura, com um copo a ser arremessado minutos a seguir e Joseph Adenuga, fiel às suas palavras, abandonou o palco.
Alguns minutos depois, um membro da produção advertiu que o rapper não retomaria se os arremessos continuassem, instalando-se finalmente um ambiente de (possível) calma pela plateia. Momento ultrapassado e desordem instaurou-se novamente, com Skepta a retomar a actuação com os mesmos níveis de fúria avassaladora antes da forçada pausa e que se manteriam intactos até ao final do concerto.
De pazes feitas com o público, ou não estivesse o artista visivelmente eufórico perante tal receção, acabando mesmo por ir cumprimentar e rappar juntar dos fãs da primeira fila, “Shutdown” viria selar a noite e a atribuir a Skepta o título de herói improvável desta edição do Vodafone Paredes de Coura. Julgando pela aceitação do público, não seria descabido que, na próxima edição, víssemos outro nome forte do hip-hop a encabeçar um dos dias do festival…
Pela primeira vez este ano, as nossas pernas aguentaram o começo do after-hours, e o argumento para as convencer era de peso, ou não atuassem as Pussy Riot. Sejamos francos: o colectivo russo é melhor conhecido pelo seu forte ativismo político do que propriamente pela sua música.
Os aplausos fizeram-se sentir em força logo no início, quando o colectivo ainda nem estava em cima do palco, quando foram exibidos 25 mandamentos pelo qual se regem e que as fazem combater contra o regime de Vladimir Putin: desigualdade de género e económica foram alguns dos tópicos centrais. Lideradas por Nadya Tolokno, que em nada se conteve nos seus discursos impiedosos, ora fosse a relatar episódios que passou na Rússia ou a dedicar canções a presos políticos, como foi o caso do ex-presidente ucraniano Oleg Sentov.
Já em termos musicais, o concerto viveu muito à base de um punk electrónico violentamente contagiante, como foram os casos das inglesas “Straight Outta Vagina”, “Bad Apples” e “Pimples”, ou das russas “Organs” e “ КОШМАРЫ” (pesadelos), desencadeando a sede de dança que viria a ser explorada momentos mais tarde com Lauer, o DJ holandês que encerraria este terceiro dia do Vodafone Paredes de Coura.
Dia 4
Todas as coisas boas acabam depressa. Por mais que se lute ou que se tente em conservá-las, a dificuldade dessa preservação equivale à tentativa de agarrar fumo com as nossas próprias mãos. Assim é o fecho de cada edição do Vodafone Paredes de Coura: depois de uma semana entre concertos tanto na pacata vila como no anfiteatro dos sonhos, de banhos gelados pelo Taboão ou dormir por um campismo que nunca dorme, é difícil de dizer adeus. Sempre foi e sempre será.
Contudo, Paredes de Coura sabe bem como fazer despedidas em grande, e reservou uma noite de festa para o seu último dia: passados treze anos, os Arcade Fire regressavam ao primeiro palco que os acolheu em Portugal, desta vez com o estatuto de cabeças de cartaz e de banda de peso.
De forma a absorver, por uma última vez este ano, a magnificência da Praia Fluvial do Taboão, a nossa entrada no recinto fez-se algo de tardia, mas ainda se foi a tempo de escutar um pouco da soul frenética de Curtis Harding.
Beneficiando de uma extenso manto humano, muito do qual já a marcar lugar para Arcade Fire, Curtis Harding fez de entertainer para uma plateia que pouco ou nada conhecia do trabalho do seu trabalho, mas que com o tempo lá que foi aderindo a uma soul contaminada de blues e R&B. Terminando ao som de “Need Your Love”, muitos foram os corpos que baloiçavam de um lado para o outro sem sair do mesmo sítio, com um sorriso rasgado nos lábios típico de quem engraçou com a coisa.
Contrariamente ao que se passou com Harding, a multidão que se concentrou no Palco Vodafone.FM para receber o carioca Silva sabia bem para onde ia. De voz doce e sonoridade bonita disfarçada de samba, a Praia Fluvial do Taboão ganhou contornos tropicais e transformou-se numa das praias de Ipanema, onde toda a gente quis mergulhar.
Arrancando ao som de “Nada Mais Será Como Antes”, como acontece no disco Brasileiro, lançado este ano e principal foco do concerto, o bonito timbre de Silva alineia-se a teclados ternurentos para reproduzir canções aconchegantes, que não precisam de grande esforço para serem sentidas. Houve também espaço para uma dedicada equipa de sopros dar o ar de sua graça em alguns temas, como “Caju” e “Vista Para o Mar”, que obtiveram das maiores ovações daquela (quase) noite.
Deambulando por samba, reggae e até bossa nova, Silva encantou tudo e todos, fazendo-nos até questionar até que ponto uma aposta no Palco Vodafone não teria sido assim tão descabida. Com “Fica Tudo Bem” a puxar cantoria afinada por parte do público, este último dia do Vodafone Paredes de Coura preparava-se para implementar a palavra “bonito” como estado de espírito pelos festivaleiros.
Bonito foi também o ambiente que se viveu por Big Thief. Em noite de estreia absoluta por Portugal para o projeto americano, o 18 de Agosto ficará para sempre marcado na memória da banda liderada por Adrienne Lenker, ou não se tivesse tratado da maior plateia para quem já alguma vez tinham tocado.
Todavia, o infortúnio também bateu à porta dos Big Thief, mais precisamente à de Buck Meek, que por motivos de saúde não se conseguiu juntar aos colegas em palco. Esta situação levou a Lenker acatasse o peso de tocar uma guitarra que valesse por duas, o que só por si deixou a vocalista da banda a tremer de nervosismo. Todavia, poucos são os festivais frequentados por um público tão acolhedor como o de Paredes de Coura, levando a que o dito nervosismo dissipasse rapidamente ao final da de entrada, composta por “Real Love” e “Shark Smile”.
Com as atenções que já metade do festival tinha voltadas para os Arcade Fire a tirarem uma pausa, com os Big Thief a serem mais do que merecedores da mesma, o público deixou-se levar facilmente pela mágoa e melancolia que a voz de Adirenne Lenker carregava, acalmando os ânimos e instalando-se um ambiente de respeito e curiosidade. Apesar de os Big Thief serem uma banda cuja sonoridade em tudo ganha se jogar dentro de um cenário intimista, o silêncio que se fez sentir pelo habitat natural da música proporcionou a que o belíssimo catálogo de canções da banda fizesse a mossa emocional que tanto se esperava.
Contando com dois discos na bagagem, Masterpiece e Capacity, balançados de igual modo no alinhamento, os Big Thief arranjaram ainda tempo para apresentaram um vasto leque de novas canções, com “Not” e “The Toy” a sobressaírem. Definitivamente que o regresso da banda oriunda de Brooklyn a Portugal estará para breve.
Premiados com um dos mais apetecíveis timeslots para uma banda portuguesa em Paredes de Coura, coube aos Dead Combo a respeitável tarefa de abrirem para os Arcade Fire. Com duas guitarras que teimam em cantar um fado que é mudo, a dupla lisboeta provou estar à altura do desafio que foi o de antecipar a banda mais antecipada de todo o cartaz, proporcionando um concerto que certamente ficará para sempre na memória de Tó Trips e Pedro Gonçalves.
Promovidos a banda completa para a ocasião – bateria (Alexandre Frazão), dois saxofones (Gui e Gonçalo Prazeres) e contrabaixo (António Quintino) – os Dead Combo exploraram o melhor que o recente Odeon Hotel tem para oferecer, com “Deus Me Dê Grana” a ser o primeiro exemplo a fazer-se ouvir.
À passagem de cada tema, como sucedeu com “Romero” ou “Cuba 1970”, a química inigualável que existe entre Tó Trips e Pedro Gonçalves é surpreendente, com a cumplicidade que une os dois músicos a ser mais do que notória. Apesar da facilidade em dedilhar as cordas de uma guitarra ser tão natural como respirar para ambos, é impossível não salientar o notável trabalho da banda de apoio que acompanhou os Dead Combo, tornando uma sonoridade limpa e cristalina em momentos envolventes, rompidos apenas por estrondosas e calorosas palmas de apreço.
Mesmo com temas como “Esse Olhar Que Era Só Teu”, emotivo e belíssimo desde a primeira nota à última, a gritarem música portuguesa por todos os lados, foi em inglês que se cantou no concerto de Dead Combo, com Mark Lanegan, voz pesada do rock alternativo de Seattle, a fazer uma perninha para três temas, sendo um deles “I Know, I Alone”, tema pertencente ao último disco. Apesar do enorme calibre que paira sobre o nome de Lanegan, sentiu-se um certo abrandamento no concerto face a esta colaboração, com a instrumental rica dos Dead Combo a dar um severo passo atrás. Todavia, o ritmo foi recuperado, com a saída de palco de Lanegan, ao som de “Bunch of Meninos” e “Lisboa Mulata”.
Muitos eram os corações que já estavam num enorme estado de frenesim só com a montagem de palco dos Arcade Fire, e não era para menos: entre variados instrumentos em palco ou dois televisores gigantes presos no tecto, com uma enorme bola de espelhos a cair por entre o meio dos dois, a produção do concerto só por si agoirava um concerto marcante, uma experiência fora do comum. Dito e feito.
Começando ao som de “Everything Now”, lendo-se ‘tudo agora’ intercalado nos televisores, os Arcade Fire implementaram uma dançante febre de sábado à noite, com uma saltaria constante a ir surgindo um pouco por todo o lado do anfiteatro dos sonhos. De seguida, as pernas teriam direito a um breve descanso com uma viagem ao passado através de “Neighborhood #3 (Power Out)”, com palmas altamente sincronizadas a marcar o pulsar da canção. Como manda a tradição, sucedeu-se “Rebellion (Lies)” que uniu as quase 27 mil pessoas a entoarem “LIES” em plenos pulmões. Três canções e os Arcade Fire já tinham o público na palma das suas mãos.
Everything Now, o quinto disco de originais dos Arcade Fire, foi recebido de forma algo pouco entusiasta tanto pelo crítica como pelos fãs, mas a dimensão que as canções do próprio ganham em palco é surpreendente, com o falsetto de Régine Chassagne em “Electric Blue” a soar bem mais vivo e aliciante, e “Put Your Money On Me” a soar mais vibrante do que nunca.
Depois uma mão cheia de canções a consolidarem o estatuto dos Arcade Fire enquanto uma das melhores bandas para se ver num palco, entrou-se numa sentida viagem cronológica pelo melhor que os Arcade Fire têm feito ao longo dos treze anos que os separavam da sua primeira passagem por Paredes de Coura; “este foi um dos primeiros palcos europeus que pisámos, e foi a partir daqui que caímos na realidade que isto estava mesmo a acontecer. Obrigado Portugal por nos terem mostrado o quão felizes poderíamos ser na Europa e pelo mundo”, agradeceu um comovido Win Butler”.
A comoção nas palavras de Butler tomaria a forma de um dos primeiros temas escritos pelo próprio, “Cars & Telephones”, escrita em 2001 e nunca editada em estúdio. A partir daí, entrou-se por um campo de greatest hits que viviam na ponta da língua dos mais devotos da banda: começando ao som de uma “Intervention”, resgatada de Neon Bible e dedicada a Donald Trump, passando pelo reinado de The Suburbs com o tema título, a entusiasmante “Ready to Start” e a eletrizante “Sprawl II (Mountains Beyond Mountains), com esta última a atear a bola de espelhos que se prolongaria na era Reflektor, onde “Afterlife” teve até direito a um snippet da “All My Friends” dos LCD Soundsystem, os Arcade Fire apresentaram um alinhamento rico, diverso e capaz de encher as medidas a todos os fãs, tanto os mais recentes como os de longa data.
Para o (mais do que) merecido encore, veio também um dos mais bonitos momentos de todo o festival: com os televisores gigantes a solicitarem que fossem acesas lanternas, “Everything Now (Continued)” foi tocada para um mar de branco, formando-se uma união plena entre banda e plateia. Trauteou-se o tema num só e ambas as partes ficaram com uma honesta expressão de rejúbilo na cara, que transitou de forma natural para os últimos gritos em “Wake Up”, despedida emotiva e prolongada de um concerto que muitos levarão consigo nos seus corações durante muito tempo.
Todas as coisas boas acabam depressa. Felizmente, o Vodafone Paredes de Coura voltará a abrir portas dos dias 14 a 17 de Agosto de 2019. Até lá, basta-nos reviver a melhor semana de Agosto na nossa memória, nos nossos sonhos, pois aí, as coisas boas nunca deixarão de existir.
Até para o ano, Coura! <3
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terça-feira, 28 agosto 2018