Reportagem MEO Kalorama 2023
Se, o ano passado, o festival das Giras e Audaciosas poderia ter tido laivos de uma espécie de Rock in Rio fora de horas, a edição deste ano do pujante MEO Kalorama não deixou espaço para dúvidas: estamos perante um sério caso de sucesso, contra tudo e contra todos.
E este contra tudo começou mesmo ainda antes dos primeiros acordes - ou não tivesse o vento derrubado parte do palco dias antes de abrirem as portas do recinto.
No final, acabamos por assistir a várias cerimónias a roçar o religioso, variando apenas na religião de eleição: houve quem se ajoelhasse aos pés de Arcade Fire, quem sacrificasse “bruxinhas da Zara” ao som de Florence & The Machine, quem extravasse demónios com Yeah Yeah Yeahs, quem dançasse sem medos com Pabllo Vittar e quem celebrasse o rock com os The Hives, por exemplo.
Neste artigo tentamos pintar um pequeno resumo do que aconteceu nos três dias deste certame o melhor que conseguimos sem recurso a imagens, pois não as temos. Apelamos, por isso, ao vosso melhor exercício de imaginação e, se ajudar a pintar o cenário, fica aqui a playlist do que foi o MEO Kalorama 2023.
Para o ano há mais… resta saber se na Bela Vista (e se com fotos) - que infelizmente vimos o nosso pedido rejeitado pela organização para tirarmos fotos.
31 de agosto
Já não escapa ao rótulo de último grande festival de verão. E, apesar do frio que se foi sentindo e da chuva que foi ameaçando, o primeiro dia do Kalorama já serviria para consolidar essa fama (mesmo com menos gente que o ano passado e com muito mais pó).
E não era para menos. Entre nomes como José González, Metronomy, M83 ou The Blaze - que, por si, já justificavam o bilhete - eis que temos três grandes cabeças de cartaz… e isto só no primeiro dia. Prova de que o novíssimo Kalorama ainda pode ter muito que afinar, mas acerta onde realmente é preciso: no line-up.
O fim de tarde esteve a cargo dos Yeah Yeah Yeahs, de regresso a Portugal após uma ausência de 17 (longos) anos. Entre o novo “Cool It Down” - de onde saiu “Spitting Off the Edge of the World”, primeira canção que Karen O entoou na Bela Vista - e uma carreira de êxitos, houve espaço para a catarse ao cair do dia. Entre o pôr do sol e o colorido do “outfit” de O (que parecia copiado do logótipo olhudo do próprio festival), uma lua que ameaçava mas não deixava de cumprir a festa.
Dançamos todos ao som de “Heads Will Roll”, “Gold Lion”, “Maps” ou “Date With the Night”... E, de repente, estávamos novamente no início do milénio.
O saudosismo tem destas coisas…mas esta nem sequer era a banda mais “antiga” que nos esperava nesta primeira leva de Kalorama à moda de 2023 (mas pouco).
Seguir-se-iam, no palco principal, os Blur, que também não são propriamente de anteontem… Ao contrário dos nova-iorquinos Yeah Yeah Yeahs, os britânicos ainda este verão atuaram por cá (foram ao Primavera Sound? Eles também), mas é sempre um prazer ver Damon Albarn em cima de um palco - e fora dele, no meio da multidão.
No seu último concerto este verão, os Blur aproveitaram para visitar Portugal e falaram sobre isso, elogiando o Museu da Marioneta numa intervenção que haveria de fazer correr muita tinta. Prova da descontração que os caracteriza, de resto, e que se fez notar no line-up escorreito mas eficaz com que presentearam os festivaleiros audazes que se deixaram ficar pela Bela Vista em plena noite de quinta-feira.
A recompensa? Entre a expectável “venda” do novo “The Ballad of Darren”, tivemos direito a “Girls And Boys”, “Parklife”, “Song 2” e “Coffee And TV”. Um concerto relaxado e que cumpriu com o que se esperava dos Blur: irreverência q.b. (a idade não perdoa…) e diversão, sem descurar na qualidade. Venham cá mais vezes, que ninguém se importa… mas agora vão lá descansar, que bem merecem!
E se os Blur e os Yeah Yeah Yeahs são velhos conhecidos do público português, o que dizer dos The Prodigy? Os igualmente britânicos fecharam o palco principal do primeiro dia do certame depois de terem estado AINDA MAIS recentemente por cá (foram ao Vilar de Mouros? Eles também… UMA SEMANA ANTES).
O promovido Maxim Reality fez de MC bastante capaz, mas a ausência de Keith Flint, que nos deixou em 2019, ainda paira sobre as cabeças dos restantes elementos da banda. Flint foi, de resto, um elemento bastante presente, propalado em homenagem pela dupla sobrevivente e pela multidão, em perfeita comunhão num espaço que figura algures entre a dor, a fúria e a catarse.
Afinal de contas, a festa segue e a rave não pára, com ou sem “Firestarter” - single que, obviamente, não faltou e serviu de banda sonora ao momento mais icónico da noite, com Flint como que projetado em ondas verdes no espaço, para gáudio dos mais fervorosos fãs.
“Breathe”, logo a abrir, deu o mote para as celebrações violentas, que continuariam momento a momento com êxitos como “Voodoo People”, “Get Your Fight On” e “Invaders Must Die”, e culminando com “Smack My Bitch Up”, que serviu para provar que o mosh pit continua bem aceso.
1 de setembro
Jesus voltou à terra vestido de negro e o seu nome é Florence. Consigo, trouxe “a ressurreição da dança” e uma autêntica celebração da vida. Confusos? Já explicamos.
Se, no primeiro dia, o Kalorama saltitou entre o espírito de dança, a irreverência e a rebelião - com atenções divididas entre Yeah Yeah Yeahs, Blur e Prodigy - esta sexta-feira de festival foi o dia da ascensão das celebrações espirituais. Pudera… Florence and the Machine encabeçavam um cartaz que prometia e caíram sobre a vocalista Florence Welch as maiores expectativas. Afinal de contas, a sua presença por cá não estava cem por cento assegurada: a líder da banda britânica teve um problema de saúde recentemente e, segundo a própria, ia perdendo a vida pelo caminho… Prometeu vir, mesmo assim. E cumpriu.
Por esses e tantos outros motivos que só Florence saberá, este regresso aos palcos na Bela Vista - um dos apenas dois concertos que vai dar nos próximos tempos - acabou por ser, mais do que uma festa ou um espetáculo, uma celebração do que é estar vivo e sentir coisas, sem pejos nem amarras.
“Estava com muito medo de voltar ao palco”, confessou, numa conversa intimista que foi tendo com o público, durante a hora que esteve a comandar o seu autêntico exército de “bruxinhas da Zara” (como ouvimos uma festivaleira apelidar). Chegada ao topo, no entanto, disse sentir-se “abraçada e protegida” e até saltou com os milhares de presentes, apesar de lhe ser contraindicado pós cirurgia misteriosa.
A ajudar a acalmar os nervos, contava, a presença de uma mão amiga: a estreante norte-americana Ethel Cain, de 25 anos, levou Florence a palco consigo umas horas antes e repetiu a dose já mais à noite, ao som de “Morning Elvis”.
Como descrever um concerto que mais pareceu uma cerimónia? Florence, com as emoções à flor da pele, não deixou de visitar o público copiosas vezes e fazer autênticas serenatas às pessoas que ia encontrando na multidão. O sentimento de intimidade era palpável e levou a vocalista a decidir-se por cantar “Never Let me Go”, canção que retirara do repertório há muito. “You Got The Love”, “Dog Days Are Over” e “Shake It Out” foram claros destaques de um espetáculo que, mais do que se ouviu, se viveu.
Depois deste autêntico pedacinho de céu…a céu aberto, debandada quase geral: quem se seguiria era Aphex Twin, que não podia ser mais díspar de Florence Welch, o que não coibiu o compositor de música eletrónica de disparar som em todas as direções. Era sexta à noite, afterall… e se uma pessoa sobrevive à rave dos Prodigy também pode muito bem quebrar o resto do sono na noite seguinte. O sábado a amanhã pertence e logo se vê…
2 de setembro
Último dia, última ida à “igreja”, desta feita dos Arcade Fire… ou será dos The Hives? Ou de Pabllo Vittar? A resposta dependeria da pessoa a quem se perguntasse, parece-nos.
Numa clara mostra de um cartaz eclético, mas que funciona, o terceiro e derradeiro dia do MEO Kalorama 2023 foi um belo mix de coisas que, à primeira vista, não funcionariam mas que, no final, estiveram em plena sintonia. Querem um exemplo?
No palco San Miguel, plasmado numa autêntica colina algures entre um dos palcos mais secundários e as casas de banho, tivemos os sempre incríveis The Hives, que fizeram aquilo que sempre fazem e que - diga-se - chega perfeitamente para nos encher as medidas: tocaram rock and roll ao mais puro estilo punk irreverente, com a mesma atitude galante-cómica que caracteriza a banda sueca. Trinta anos de carreira? Mal parece.
O jogo de cintura de Pelle Almqvist é sempre muito, já se sabe, mas foi posto à prova logo nas primeiras filas do espetáculo, povoadas por fãs arraigados de Pabllo Vittar que aguardavam por outro concerto. Demovido? Jamais. Entre os habituais “ladies and gentleman”, um “everyone in between” serviu de mote para a comunhão de estilos e o rock conquistou, embora apenas por momentos, o coração do “eletrobrega”.
Numa hora que só poderia ser descrita como épica, começamos, atrasados, mais lá ao fundo e terminamos o concerto - sabe Deus como - na primeira fila, entre suor, palhetas a voar e algum glitter alheio. Precisam realmente de saber qual foi a setlist? A festa continua a 6 de outubro, no Capitólio (como o vocalista se fartou de dizer) - e quase que apostamos que quem esteve presente neste concerto também por lá vai estar. Vemo-nos em Lisboa!
O hercúleo público aguentou - barely - e a recompensa surgiu em vários moldes: para alguns, foi uma hora surpreendentemente bem passada antes do furacão brasileiro chegar ao palco; para outros, uma boa forma de suar espaço suficiente para mais umas cervejas antes de Arcade Fire. Either way, povo satisfeito, aposta arriscada, mas certeira!
Sigamos, então, para o palco principal onde nos aguardava o concerto mais esperado da noite e uma nova religião, a dos Arcade Fire. O “appeal” indie da banda canadiana marcou uma geração e nem se deixou ofuscar por um escândalo recente, a julgar pelas dezenas de milhares de pessoas que estiveram presentes na Bela Vista e a cantar a plenos pulmões êxito atrás de êxito.
Começamos com “Age of Anxiety II (Rabbit Hole)”, seguimos por “Reflektor” até à “Afterlife”, com “The Lightning” (I e II, claro), “No Cars Go” pelos “Tunnels” de “Neighborhood” para sucumbir nos “Suburbs” (continuados) e desaguamos, acordados e à capella, na inevitável “Wake Up”.
Portugal gosta de Arcade Fire e a banda também gosta de Portugal e não tem qualquer problema em proclamar esse amor. “Dizemos às bandas todas para virem cá tocar. Vocês são o melhor público!”, disseram, a dada altura. E nós acreditamos. Oh, se acreditamos.
Em 2024, o festival regressa nos dias 29,30 e 31 de Agosto.
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domingo, 22 dezembro 2024